A cidade é um lugar de encontro e ocupação. Estar presente nos espaços públicos é uma forma de resistir à violência e diminuir a segregação social. No entanto, o processo de urbanização brasileiro, aliado a falhas de planejamento e gestão, gerou consequências e desafios que permanecem presentes. Os serviços básicos de saúde, habitação, transporte coletivo público e saneamento básico ainda não se tornaram acessíveis a todos os habitantes das cidades do país.
Enquanto o centro concentra maiores oportunidades de trabalho e habitação, as regiões periféricas sofrem sem um planejamento urbano, poucos pontos culturais e uma população de baixa renda. A falta de ocupação da cidade gera consequências como o esvaziamento dos espaços públicos. É o que conta Irlys Barreira, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC):
“Nós temos o movimento de ocupação, mas temos também o movimento de exclusão. Em Fortaleza, nós temos uma cultura muito forte de não convivência com os diferentes, com os desiguais. Nós não temos acesso aos mesmos equipamentos de forma igualitária. Embora se perceba que há investimentos por partes do poderes governamentais, mas o que a gente percebe é que, às vezes, há muito esvaziamento. As pessoas já não frequentam, elas saem de cena e você percebe zonas completamente esvaziadas. É o fato de não ter ninguém que gera o medo da ocupação. Quando os espaços são bem ocupados, a violência diminui, porque todo mundo exerce uma espécie de vigilância coletiva. Quando não tem ninguém na rua, a gente não anda porque tem medo. Quanto mais pessoas nas ruas, nas calçadas, nos espaços, mais é possível criar um ideal de convivência e criar regras que não dependem só da vigilância”.
Irlys, juntamente com Danyelle Nilin, que também é docente do Departamento de Ciências Sociais da UFC, organizaram o livro A cidade sob o chão do espaço público, resultado de pesquisas sobre o uso dos espaços, movimentos, mobilidade urbana, patrimônio público, entre outros assuntos. Danyelle, com base nessa pesquisa, explica que a ocupação dos espaços públicos de Fortaleza acontece tanto por parte do poder público quanto da população:
“Do ponto de vista do poder público, algumas questões são realmente vistas nas áreas mais ricas da cidade. Por exemplo, até hoje o bicicletar ainda não atingiu a periferia. Portanto, as ciclofaixas de lazer e a possibilidade das pessoas usarem as bicicletas de forma mais segura está posto mais num lado da cidade. Quando se trata de ocupações feitas principalmente por moradores, a gente percebe que tem uma coisa na cidade inteira, porque as pessoas vão se organizando e isso não é um coisa recente. Existem vários lugares na cidade onde as pessoas estão criando maneiras criativas de fazer essa ocupação, percebe-se, inclusive, que não se precisa de muita coisa, nem muito investimento para que as pessoas possam ocupar. Às vezes basta a ideia e uma prática ser estimulada que ela mesmo vai se multiplicando”.
A exemplo dessas práticas independentes, em Fortaleza, há mais de um ano, o coletivo Tertúlia Black Vândala, um grupo de discotecagem composto por sete DJs e seu produtor, realiza eventos nos mais diferentes bairros da cidade. O grupo já esteve no Centro, na Cidade 2000, na Barra do Ceará, no Benfica e em pontos turísticos importantes, como a Praça dos Leões e a calçada do Theatro José de Alencar, além de comunidades como o Titanzinho e o Poço da Draga. Mariana de Castilho, conhecida como DJ Maarji, faz parte do coletivo e relata como é a experiência de estar nesses espaços:
“Em respeito às pessoas que já tem uma vivência cotidiana naquele lugar em que a gente vai fazer a festa, nós não vemos isso como uma ocupação. Como a gente sempre faz uma conversa antes da festa, tenta entender aquela comunidade - a gente tem essa conversa com moradores, com associação dos moradores, com pessoas de outros coletivos daquele local - a gente acaba sentindo que não é uma ocupação, mas sim uma visita que estamos fazendo à casa de alguém. Eles, como abrem as portas, estão recebendo visitas, então não é tanto uma ocupação mais uma relação afetiva. Esse tem sido o grande lance da forma como a Tertúlia navega pelos bairros de Fortaleza. A Tertúlia tem dado oportunidade para muita gente que frequenta a festa de ir para bairros de Fortaleza que nunca tinham ido, não sabiam nem onde ficavam”.
Já um equipamento desenvolvido pela Prefeitura de Fortaleza, com apoio do Governo do Estado do Ceará, são as Areninhas, espaços de prática esportiva que servem como ambientes de convivência e de lazer. Marcos Robério é jornalista, servidor da UFC e morador do bairro Messejana, onde se encontra uma das Areninhas. Ele conta como o equipamento tem ajudado na ocupação do bairro:
“A impressão que dá nesses primeiros anos de Areninha é de que ela contribui para a diminuição de violência, diminuição de conflitos locais. Ajuda a impedir que os jovens sejam facilmente arregimentados pela lógica do crime, porque se torna uma opção na vida dos jovens. [Além disso,] esse papel de dinamizar esse comércio popular local. O que a gente percebe é que há várias famílias que tiram alguma renda a partir de atividades que giram em torno do campo, em torno da Areninha. Por exemplo, pessoas que vendem pratinhos de comida, churrasquinho, outro vende cerveja, caipirinha, outro coloca equipamentos para receber crianças etc. Então acaba tendo uma movimentação muito maior do que o simples espaço de formação de esportes”.
A lei nº 10.257, conhecida como Estatuto da Cidade, “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos”. Garantindo à sociedade o direito “à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer”.
Reportagem de Thays Maria Salles com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira