Fortaleza está redescobrindo os trabalhos e a vida do pintor, escultor e desenhista José Leonilson, que foi um dos maiores expoentes da arte contemporânea brasileira. Cerca de 120 obras do artista estão sendo apresentadas na exposição Leonilson: Arquivo e Memória Vivos, que ocorre desde o dia 14 de março e vai até 9 de julho no Espaço Cultural Unifor.
Quatro meses após a morte de Leonilson, em maio de 1993, seus familiares e amigos fundaram o Projeto Leonilson, uma sociedade sem fins lucrativos com o intuito de reunir todas as obras do artista em um Catálogo Raisonné, seleto registro literário com a lista completa do trabalho de um artista. 24 anos após o surgimento do projeto, com um intenso processo de catalogação e com o apoio da Fundação Edson de Queiroz, o objetivo foi alcançado.
O lançamento do catálogo, dividido em três volumes que reúnem a produção do artista nas décadas de 70, 80 e 90, ocorreu hoje (30) no Espaço Cultural Unifor. O fortalezense agora faz parte do distinto grupo de brasileiros contemplados com um Raisonné, como Tarsila do Amaral, Cândido Portinari, Vik Muniz e Antonio Bandeira.
"O artista deixou muitas pistas de localização de trabalhos nos cadernos dele. A gente procurou obras que estão em galerias, obras que ele deu, que ele vendeu. Foi um trabalho de investigação intenso para poder chegar nesses 3.800 registros que o catálogo reúne", diz Ricardo Rezende, curador da exposição Leonilson: Arquivo e Memória Vivos.
O intenso cotidiano de Leonilson
À primeira vista, as obras do artista cearense são simples e rústicas. Entretanto quem entra em contato com seu trabalho percebe a profundidade e a sinceridade do traço leonístico. Sua obra tem uma forte carga autobiográfica e aborda as angústias do humano moderno. Apreciar sua arte é também apreciar o dia a dia. "Ele vivia a arte o tempo todo. Isso era muito sobre estar passando o cotidiano. Era um modo de contar um pouco sobre a história e o sentimento dele através da arte", afirma Ana Nelice Dias, a "Nicinha", irmã do artista e presidente do Projeto Leonilson.
José Leonilson Bezerra Dias nasceu no dia 1 de março de 1957, em Fortaleza, mas a estadia em sua terra natal foi curta. Em 1961, mudou-se com a família para São Paulo. Desde cedo, o jovem Leonilson demonstrava apego pela arte. Nicinha lembra que "quando a mamãe queria ver o Leo quieto, ela dava papel e lápis de cor para ele e ele ficava tranquilo".
Entre 1977 e 1980, o cearense estudou Artes Plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Já em 1981, na cidade de Madri, Leonilson realizou a sua primeira exposição individual e viajou por toda a Europa. Até o fim da década de 1980, Leonilson expôs seus trabalhos em várias cidades e países, criando contatos e traçando seu caminho como um artista de renome internacional.
A geração de 80
A década de 1980 foi marcada por profundas mudanças na sociedade brasileira. Em 15 de março de 1985, o povo pôde comemorar o fim da Ditadura Militar que já durava 21 anos. O meio artístico nacional desfrutou ao máximo do sentimento que os novos tempos de democracia trouxeram.
Junto de artisas como Leda Catunda, Jorge Duarte e Beatriz Milhazes, Leonilson fez parte do movimento que transformou o meio artístico. Este grupo de artistas plásticos puderam liberar seus mais profundos sentimentos e os pintar em uma tela. A motivação era o fazer manual e prazeroso que podia ser encontrado na arte, uma mistura de sensações coloridas íntimas e rústicas que se ligavam emocionalmente ao público e rompiam com as doutrinas acadêmicas.
Thaís Gadelha, mediadora da exposição Arquivo e Memória Vivos afirma que a geração de 80 foi formada por "artistas pós-ditadura que vieram com o intuito de falar de si mesmos, de seus sentimentos e de suas histórias".
Leonilson e seus companheiros transformaram e propagaram a arte plástica contemporânea nacional no Brasil e no mundo. As novas raízes deste movimento, que trazia uma intensa integração entre a arte e a vida, fizeram nascer todo um novo panorama artístico.
A paixão de JL
Em janeiro de 1990, Leonilson começou a gravar um diário íntimo em fitas cassete. O objetivo era deixar um registro de seu cotidiano para a posteridade. Nestes áudios, alguns temas sobre a vida do artista ficam claros, como a homossexualidade do artista, que permeia sutilmente suas obras.
Nas gravações, o amor de Leonilson por sua família aparece de forma inquestionável. Porém o forte sentimento pelos parentes se misturava com o receio de contar à sua mãe o fato de ser gay. Nicinha declara que o "maior problema era como a mamãe ia se sentir, a mágoa que ela ia passar pelo fato de ele ser descoberto como homossexual".
Estes áudios estão no filme "A paixão de JL" (2016), do diretor paulista Carlos Nader.
Os últimos anos do artista
Em 1991, Leonilson se descobriu portador do vírus HIV, numa década em que a AIDS assolava a juventude de todo o mundo, principalmente os jovens homossexuais, que eram tidos como um "grupo de risco". Neste época, a obra de Leonilson passou por intensas mudanças. Suas produções ganharam uma forte carga espiritual, ao mesmo tempo, sarcástica e suave. Suas exposições se tornaram ainda mais intimistas, e seu contato com o público, mais profundo.
A doença não diminuiu a vontade artística do cearense, que produziu obras até seus últimos momentos. Seu trabalho final foi uma instalação na Capela do Morumbi em São Paulo, na qual o artista buscou um sentido espiritual para a fragilidade da vida.
Leonilson faleceu no dia 28 de maio de 1993 aos 36 anos de idade devido a complicações com a Aids. Assim como Cazuza, Henfil e Caio Fernando de Abreu, Leonilson morreu precocemente. O artista deixou um legado de quase 4 mil obras de arte.
A influência na juventude fortalezense
Fortaleza está em um processo de redescoberta artística. A juventude alencarina borbulha de novos projetos e coletivos que buscam uma arte inovadora, e Leonilson é visto como uma referência constante nestes novos trabalhos. Thaís Gadelha afirma que "a obra do Leonilson, por ser atual, atinge um público mais jovem. As pessoas vão à exposição conhecer o que é esse trabalho tão inovador. Suas obras atingem o público de uma forma muito sentimental e subjetiva, propiciando que os jovens de hoje em dia tenham novas ideias das infinitas possibilidades dentro da arte".
O traço leonístico pode ser encontrado em inúmeras facetas da produção artística de Fortaleza. Uma obra que demonstra a forte influência de Leonilson é o curta metragem O Que Tem Na Caixa, da roteirista e diretora cearense Angélica Emília. O nome do filme é uma referência à Caixa d'água dos Peixinhos, único trabalho do artista em terras alencarinas. A obra é um instalação que fica próxima à orla da Praia de Iracema.
São muitos os exemplos de jovens fortalezenses que veem em Leonilson uma inspiração artística. O estudante de jornalismo e teatro Cláudio Lucas traz esse referência na pele. "A principal questão do Leonilson que eu trago para a arte é poder realizar um trabalho biográfico, um trabalho baseado nas minhas experiências e ainda sim, isso ser um tipo de arte válida", comenta Cláudio.
Cedo, Leonilson saiu de Fortaleza para ganhar o Brasil e o mundo com sua arte do cotidiano. A cidade natal do cearense foi o primeiro estágio de seu curto, porém intenso, caminho de vida. 24 anos depois de sua morte, suas obras ainda são atuais e causam um sentimento de inquietude na juventude alencarina.
Leonilson morreu, isto é certo. Nunca mais veremos este artista de alma leve em carne e osso. Porém o seu espírito ainda vive intensamente e cada pessoa que contempla suas obras leva no peito um pouquinho do cearense.
Confira as entrevistas de Ana Nelice Dias, Thaís Gadelha e Angêlica Emília na íntegra: