Era uma casa que contava histórias. E era, assim, tão importante, que tinha nome e sobrenome: chamava-se Residência Benedito Macedo. Exemplar raro da arquitetura moderna em Fortaleza, o conjunto arquitetônico também foi sede do Grupo J. Macedo - uma tradicional indústria da moagem de trigo, fundada em 1939 e ainda em plena atividade. Mas o valor arquitetônico e cultural da Residência Benedito Macedo quase virou poeira.
Em abril deste ano, os novos proprietários iniciaram a demolição da residência. Ao mesmo tempo, uma solicitação de tombamento impede que tudo seja perdido. O documento foi elaborado pelos arquitetos Romeu Duarte, Beatriz Diógenes e Ricardo Paiva, professores do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC). E foi encaminhado ao secretário da Cultura do Estado, Fabiano dos Santos Piúba, por meio do Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento do Ceará.
O processo está na fase recursal, em que os proprietários podem contestar o tombamento do imóvel. Mas é também a fase do tombamento provisório, que garante alguma preservação, explica Alexandre Veras, arquiteto da Coordenação de Patrimônio, Cultura e Memória da Secult - Secretaria da Cultura do Estado do Ceará:
"Com o tombamento provisório ficam impedidas todas e quaisquer intervenções dentro do lote. Os proprietários não podem continuar com as obras de demolição, dentre outras. A desobediência com relação a essa determinação do tombamento implica em algumas sanções, que podem agravar caso eles desrespeitem."
Localizada no limite dos bairros Aldeota e Meireles, a Residência Benedito Macedo olha a Cidade por todos os lados. E também é cobiçada pelo desejo do mercado imobiliário. A casa, o jardim e o edifício administrativo desativado ocupam o quarteirão formado pelas ruas Marcos Macedo, Visconde de Mauá, Maria Tomásia e Osvaldo Cruz. Daquele ponto privilegiado, a antiga casa viu Fortaleza crescer, ao mesmo tempo em que se tornava memória do lugar
Construída em 1968, a Residência Benedito Macedo guarda ainda um valor material pelo conjunto da obra, defendem os especialistas. O projeto é um exemplar da arquitetura moderna, assinado pelos arquitetos Acácio Gil Borsoi e Janete Costa. O conjunto residencial é enriquecido pelo paisagismo de Roberto Burle Marx, comenta a arquiteta Beatriz Diógenes, professora da UFC:
"Esse conjunto todo, formado pela residência, o prédio comercial e os jardins, além de serem destaque nos acervos das obras dos arquitetos - o Borsoi, o Burle Marx - conforma, também, um dos mais importantes conjuntos da arquitetura modernista, não só no Ceará, mas também no Nordeste e no Brasil mesmo. E constitui um verdadeiro, um autêntico patrimônio cultural edificado. As soluções arquitetônicas, como o concreto aparente, os brises, a laje impermeabilizada, o pilotis, os balanços, remetem claramente ao repertório da arquitetura moderna brasileira. Ao mesmo tempo, também se vê o emprego de soluções que atendem às necessidades funcionais e culturais das especificidades do local, como é o caso da presença de varandas, de áreas sombreadas, utilização de cobogós, o emprego da madeira e da pedra."
Além do traçado valoroso, a Residência Benedito Macedo é composta por significativas obras de arte, como painéis cerâmicos de Francisco Brennand e uma escultura de Sérvulo Esmeraldo. A casa modernista também abriga uma Cidade e um tempo, observa o arquiteto Jefferson Lima, presidente do IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento do Ceará:
"Do ponto de vista da história, como diz o poeta: 'bela, é uma cidade velha'. Então quem conta a história das nossas cidades - isso quem diz é o arquiteto italiano Aldo Rossi - quem conta a história das nossas cidades são as edificações. A história da nossa cidade é contada através dos marcos arquitetônicos. E os marcos arquitetônicos são esses edifícios construídos em diferentes tempos. Através disso, é que nós conseguimos perceber a pátina urbana. Conseguimos perceber a evolução da nossa tecnologia, a nossa evolução econômica, a nossa evolução social."
As histórias que ficaram entre paredes e caminhos vão sendo descobertas pelo garimpo das pesquisas. A Residência Benedito Macedo não passou despercebida pelo olhar da UFC. De acordo com a arquiteta e professora Beatriz Diógenes, a edificação e seu paisagismo são objetos de vários estudos sobre o urbanismo local. São estudos acadêmicos que se traduzem na preservação do patrimônio comum e da memória de uma cidade.
Para o arquiteto Alexandre Veras, da Secretaria da Cultura do Estado, o conhecimento científico produzido pela UFC foi fundamental na solicitação de tombamento da residência:
"Graças à UFC, aos seus professores, às pesquisas que são realizadas no âmbito da Universidade, as motivações que foram desenvolvidas em prol da preservação do bem são também oriundas do conhecimento científico e acadêmico que é produzido pela Universidade. Então a UFC também tem um papel bastante importante nesse processo."
Se o tombamento da Residência Benedito Macedo se tornar efetivo, é possível recuperar o que foi perdido no início da demolição, restaura a arquiteta Beatriz Diógenes:
"Por exemplo: com relação às edificações, a volumetria da residência, do edifício, o tratamento das fachadas, os detalhes externos, em razão da qualidade dos materiais que foram empregados na obra e a excelência da construção, eles estavam, até então, em bom estado de conservação. Mas, da demolição, viu-se que muita coisa foi destruída, embora eu acho que tudo pode ser recuperado. Até porque os projetos arquitetônicos, paisagísticos, mesmo o de arquitetura de interiores, que são a base para ações de conservação, restauro e adaptação ao novo uso, esses projetos estão em poder de instituições que representam seus autores."
Se houver a proteção oficial e da preservação necessária, outros usos podem ocupar a antiga construção. Dessa maneira, a casa contaria mais histórias, soma a arquiteta Beatriz Diógenes:
"Poderia, por exemplo, ser uma fundação de caráter privado ligada aos proprietários, mas que fosse permitido o acesso ao público. Nós vemos pelo Brasil vários exemplos como esse: em São Paulo, temos a Fundação Pietro Maria Bardi na casa projetada pela Lina [Lina Bo Bardi, arquiteta italiana, casada com Pietro Maria]; a Fundação Oscar Americano, com um projeto belíssimo do Oswaldo Bratke; Fundação Vilanova Artigas, na casa do arquiteto. Já no Rio de Janeiro, a gente tem o Instituto Moreira Salles. São exemplos de como esses imóveis foram preservados e têm um uso, oferecendo, inclusive, programações culturais."
A antiga Residência Benedito Macedo está aberta à visita dos novos tempos, convida o arquiteto Jefferson Lima, presidente do IAB-Ceará:
"A residência tem uma arquitetura marcante, desde a sua implantação no lote, desde a forma como ela se organiza seus espaços de chegada e acesso, de vistas, e, principalmente, pela felicidade do arquiteto em saber compor muito bem a relação do externo, do jardim e da residência. É um exemplar marcante e nós devemos preservá-lo e saber readaptá-lo aos novos usos."
Recuperar o passado é reconhecê-lo. E a história é ampliada sempre que o presente convive com as memórias.
Reportagem de Ana Mary Cavalcante