A convivência em comunidade é fundamental para o conceito de política. Se sentir pertencente a um determinado grupo é a base do estabelecimento de uma sociedade. E uma das principais maneiras de alcançar esse pertencimento é através da representatividade: de você se reconhecer nas imagens que vê na rua, na televisão, no cinema, nas revistas e nas diversas outras mídias que fazem parte do nosso cotidiano.
Por esse motivo, a imagem sempre teve um papel central na ideia de política. Em fotografias, pinturas, na nossa aparência estética etc. A imagem está presente em nossas vidas de diversas maneiras e instiga concepções, sentimentos e opiniões em nós e nos outros. Ao mesmo tempo, ela também é peça fundamental para a memória da sociedade. Ela captura momentos que refletem questões relevantes de nossa própria organização social ao longo da história, e diz muito sobre como acontece o processo de formação de nossa identidade.
Lúcia Stumpf é doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e estuda as representações sociais na arte brasileira, em pinturas e fotografias que datam do século XIX e XX. Um dos enfoques de sua pesquisa é a forma como o negro é representado nesses meios e como as mudanças políticas ocorridas no Brasil da época tiveram influência nessa representação:
"Na fotografia, no século XIX, no Brasil, há primeiro essa violência do período escravista: a imagem do negro subjugado. Uma imagem bastante apagada também, é preciso dizer, em relação à quantidade de escravizados e a importância que a escravidão teve na vida política, social e econômica do Brasil. A presença dos negros é muito minimizada na fotografia e quando aparece é dessa forma violenta. E é no final do século XIX então, com o fim da escravidão, quando os negros conquistam sua liberdade, que eles querem fixar aquele momento, querem fixar a sua atividade, a sua autonomia, a sua agência sobre a sua própria imagem e vão eles aos estúdios fotográficos realizar esse tipo de memória imagética, criar esse tipo de imagem em circulação. "
Hoje, vivemos no que alguns pesquisadores chamam de “sociedade da imagem”, em que a representatividade alcança uma importância ainda maior devido à enorme quantidade de imagens que consumimos e produzimos. Para além das imagens veiculadas nas diversas redes sociais presentes em nosso cotidiano, questões como a autoimagem e os padrões estéticos de beleza entram fortemente em pauta na atualidade.
Mais do que nunca, temos hoje uma sociedade em que imagens consideradas divergentes do padrão, em especial o padrão estético, estão aparecendo cada vez mais, apesar de não se tratar ainda de um cenário ideal. A atriz e produtora Jéssica Teixeira se baseou nessas questões que nós todos temos com o próprio corpo para construir seu espetáculo de teatro, intitulado E.L.A. Seu espetáculo aborda diversas questões de imagem que perpassam a socialização desse corpo.
"Eu estava tendo algumas questões sobre entrar em cena. Eu sentia muita dificuldade de entrar em cena falando porque eu tenho um corpo muito comunicativo, e aí eu tenho que deixar ele se comunicar primeiro de fato para depois eu falar verbalmente 'olá, bom dia, tudo bem?'. Uma das questões era: 'será que só eu chego em um estabelecimento e sinto que as pessoas estão conversando com meu corpo antes mesmo de eu dar um oi?'. Às vezes, eu estou aqui de lado, de costas, e olho para os lados e as pessoas já estão batendo o maior papo com o meu corpo. E aí eu percebi também que isso não era uma questão só minha. Isso é meio que universal. A gente não escolhe nascer nesses corpos e eles têm vida própria, se comunicam sem precisar a gente falar nada. E, ao mesmo tempo que tem essas questões na vida cotidiana, eu tinha essas questões em cena", confessa a atriz.
Jéssica também falou sobre o quanto a expressão dessas imagens e corpos que se desviam do padrão estético, que a gente tem estabelecido na sociedade, é em si um ato político muito importante:
"É o direito de aparecimento de certos corpos que não aparecem tanto. O meu corpo é muito estranho, então o fato de ele existir e ele poder aparecer, no meu caso, como eu sou atriz, eu dou ao meu corpo um aparecimento, uma visibilidade muito maior do que ele teria se eu trabalhasse dentro de um escritório, apenas em quatro paredes. Então eu acho que política para mim é muito isso: é da ordem da existência, eu tenho o direito de existir, de ir e vir, mas eu também tenho o direito de aparecer."
Foi por perceber essa necessidade de aparecimento de corpos distintos que Wise Primo co-fundou, com mais duas colegas, o coletivo Curta e Gorda. Baseado no movimento body positive (positividade corporal), o coletivo promove encontros, eventos, cursos e workshops sobre os mais diversos temas, como moda, beleza, inclusão etc. Para além da questão estética relacionada ao corpo gordo, a jornalista destaca também questões relacionadas à própria acessibilidade:
"O corpo gordo existir é um ato político, porque a partir do momento que a gente decide lutar por direitos, para mim isso já é fazer política. Então quando por exemplo, ando de ônibus e abro a boca para dizer para as pessoas 'olha, eu não consigo passar nessa catraca, eu não caibo nessa cadeira'. Porque a maioria das pessoas gordas têm suas limitações, inclusive de mobilidade, e continuam vivendo dentro de um ostracismo imenso, porque ninguém grita por elas. Então nessa hora que a gente vai lá, e briga e se posiciona, é um grande ato político."
Já a publicitária Monnalisa Coelho desenvolveu um estudo a partir de entrevistas realizadas com 195 mulheres no Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA). A ideia da Monnalisa era identificar como as mulheres negras se sentem representadas na publicidade brasileira, baseado na própria experiência que ela, mulher negra, teve ao formar sua própria identidade. O resultado encontrado pela publicitária reforça a ideia da importância da representatividade:
"Ficou muito claro no decorrer da pesquisa que o padrão que essas mulheres se espelharam foi um padrão totalmente eurocêntrico. Muitas sofreram. Inclusive, muitas passaram por um processo de alisamento no cabelo, depois se empoderaram. E aí, nos últimos anos, a gente pode olhar como esse tema de representações sociais tem sido falado. Então o falar-se sobre isso influenciou o empoderamento dessas mulheres negras, que cresceram sem nenhuma representação, que sofriam por não se identificar no padrão que a mídia colocava. Graças à Internet, ao YouTube, a várias influencers negras, esses padrões têm sido quebrados e essas mulheres têm conseguido se referenciar em outras mulheres negras e essa corrente tem se fomentado, e as coisas têm acontecido numa maneira muito mais positiva."
Ainda sobre a pesquisa da Monnalisa, ela destacou o papel da política no nosso processo de construção de identidade. Para ela, a partir do momento que vamos de encontro aos diversos padrões que nos são submetidos pela sociedade, nós estamos realizando um ato político:
"O processo de influência da política está ligado à cultura. O processo da construção identitária de uma mulher passa pelas representações sociais, e é influenciado por esses meios: o meio político, o meio de comunicação, os grupos sociais. Existe uma cultura midiática que oferece essa base de construção de senso, de classe, de raça, de etnia, e, claro, de padrão estético para as mulheres. Então eu acredito que a influência política está, e perpassa, em todo esse processo. Porque às vezes as pessoas têm um imaginário de que a política está vinculada necessariamente apenas a políticos, e não, tudo é política. A partir do momento onde eu vou por uma vertente contrária, onde uma sociedade inteira me fala que o bonito é o cabelo liso, e eu assumo meu crespo, isso é um ato político. A partir do momento em que a sociedade fala que o bonito é vestir 36 e eu saio feliz vestindo o meu 42, isso é um ato político."
E é com essa reflexão da Monnalisa que a gente finaliza o quinto e último episódio da série Tudo é Política.
A quinta e última parte da série especial Tudo é Política com produção e apresentação de Carolina Areal e Caroline Rocha; e operação de áudio de Fernando Maia.