O esporte mais popular do mundo, o futebol, construiu relação com a política desde os seus primórdios. Mas como acontece esse elo entre o futebol e a política na prática? Na terceira parte do especial Tudo é Política, vamos mostrar a história desse vínculo e como ele continua mais forte e atual do que nunca.
Desde a sua origem, em meados do século XIX, o futebol se consolidou como o esporte mais popular do mundo. Com surgimento nas classes operárias inglesas, essa modalidade sempre teve atributos que facilitaram o crescimento do número de adeptos, como a facilidade de entendimento das regras do jogo e a emoção que as partidas causavam no público e nos praticantes.
Um exemplo dessa popularidade foi a última Copa do Mundo de Futebol Masculino, que foi disputada na Rússia em 2018. De acordo com levantamento de público realizado pela Federação Internacional de Futebol (FIFA), cerca de 3,5 bilhões de pessoas acompanharam nos estádios russos ou pelos meios de comunicação, o Mundial vencido pela seleção francesa.
Percebendo o prestígio desse esporte, muitos governantes enxergam o futebol como uma oportunidade de colocar em prática os seus projetos de poder. Ao longo do tempo, políticos de diversos países utilizaram clubes locais, seleções nacionais e competições esportivas para promoverem seus ideais e criarem uma imagem positiva de seus governos. Muitas vezes, com o objetivo de utilizar o esporte como uma cortina de fumaça para disfarçar ações autoritárias e repressão de direitos do povo.
Airton de Farias é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), e doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Ele explica como a modalidade teve contato muito próximo com regimes políticos no Brasil durante o século XX:
“No Brasil, o JK [Juscelino Kubitschek], nos anos 1950, tem um governo muito complicado e a primeira, digamos, proximidade do JK com a população do país foi quando o Brasil foi campeão do mundo em 1958. Em 1962, o João Goulart, antes do golpe, também teve toda uma preocupação de aproveitar e se aproximar, pelo menos, da Seleção [Brasileira] para ter usufrutos políticos. Isso também em 1994, o Brasil é tetracampeão do mundo e vai em Brasília. Agora, os autoritários têm toda uma particularidade, que é uma vinculação explícita. Quando se percebe regimes autoritários, como no Brasil com o Médici, a relação é muito explícita. Quando o Brasil perde a Copa do Mundo de 1966, o Brasil tinha riscos de não ir até para a Copa do Mundo de 1970. Isso é uma coisa que poucas pessoas sabem. E no desespero dos militares, trouxeram João Saldanha, que era um comunista do PCB [Partido Comunista Brasileiro] para dirigir a Seleção. Só que aí, com medo de que o Saldanha, ao chegar no México, desandasse a falar o que estava acontecendo no Brasil, os militares resolveram então tirá-lo e colocar o Zagallo que era sargento e sempre teve aquele nacionalismo meio tosco, meio bairrista, meio ingênuo, que até hoje ele apresenta.”
Mesmo com uma ligação tão próxima entre essas esferas de torcida e poder, criou-se um senso comum de que futebol e política não podem se misturar. Ao longo do tempo, esse discurso foi materializado e protagonizado por alguns personagens ligados ao esporte, como atletas, dirigentes e jornalistas. Um dos casos mais emblemáticos foi protagonizado pelo jornalista Tiago Leifert. Em fevereiro de 2018, ele escreveu uma coluna afirmando que “quando futebol e política se misturam, dá ruim”.
Após a publicação do texto, Tiago Leifert foi muito criticado por torcedores e outros jornalistas nas redes sociais, o que gerou um debate sobre essa relação. Leonardo Carneiro é sociólogo e professor da rede pública de ensino. Ele ressalta a problemática de afirmar que futebol e política não devem se vincular:
“É uma fala equivocada, né? Porque, assim, primeiro que as pessoas, muitas vezes, quando imaginam política, imaginam apenas a política oficial, a política institucional. As pessoas, muitas vezes, não percebem que qualquer ato de você tentar intervir na administração do Estado, qualquer ato que tenta intervir na organização da sociedade, isso também é um ato político, isso também é fazer política. Então na hora que você combate o racismo, você também está fazendo política. Na hora que você combate preconceitos, na hora que você reivindica direitos, isso também é política. Então a política é indissociável às esferas da nossa vida, da sociedade e, consequentemente, ela é indissociável do futebol. Ela está ali a todo o momento. Ela está misturada, está junta, está influenciando.”
Ao contrário do pensamento de Tiago Leifert e dos dirigentes que proíbem manifestações políticas dentro dos estádios, a relação entre o futebol e essa esfera de poder possui circunstâncias que valorizam a importância do posicionamento politico e da tentativa de combate aos problemas sociais.
Um momento fundamental que exemplifica a ligação entre os dois âmbitos foi à formação da Democracia Corinthiana. O movimento, criado por atletas do Corinthians nos anos 1980, causou uma revolução na gestão do clube. Onde questões como a concentração antes dos jogos, a divisão de prêmios após a conquista de títulos e os horários de treinamentos eram decididos de forma coletiva pelos jogadores.
Outra ação importante foi realizada por Sócrates, um dos líderes desse grupo. Durante as manifestações do movimento democrático das Diretas Já, o atleta subiu ao palanque em algumas oportunidades para apoiar a corrente e exigir o direito ao voto para presidente.
Mesmo com diferentes tipos de posicionamento, os discursos políticos de jogadores de futebol são importantes, pois se tratam de figuras que, muitas vezes, são acompanhadas por um grande público. A repórter esportiva Karine Nascimento comenta sobre os impactos das manifestações políticas dos atletas ao longo do tempo:
“Eu acho importante sim, ainda que sejam opiniões questionáveis. Porque, se a gente for levar em consideração o plano de governo do atual presidente, a palavra 'esporte' nem sequer é mencionada. Mas eu não acho que, ultimamente, esses posicionamentos estejam mais frequentes. Porque se a gente for pensar em décadas anteriores, tinham muito mais atletas envolvidos com a questão. Mas eu acho importante que os atletas tenham essa possibilidade de se manifestar. Porque, assim como a gente tem o Felipe Melo apoiando o atual presidente, por exemplo, a gente também tem outros atletas que declaram sua posição mais de esquerda. Como tem o Igor Julião, jogador do Fluminense, que é um cara muito ativo dentro dessa questão de posicionamento, de falar as opiniões dele, mesmo sendo um atleta e sabendo que isso pode ter algumas conseqüências, não necessariamente dentro do time, mas até mesmo com a torcida. Vai que tem gente que vai olhar meio torto por causa das opiniões dele. Mas eu acho que são posicionamentos importantes, sim.”
Um fenômeno que está acontecendo nos times ao redor do mundo é a criação das chamadas torcidas antifascistas. Essas organizações aliam o amor pelo futebol ao posicionamento político e sua principal atuação está no combate aos ideais da extrema-direita e na conscientização de problemáticas como o machismo, o racismo e a homofobia.
No Ceará, os três maiores clubes da capital possuem torcidas de caráter antifascista e atuam em conjunto com outros movimentos sociais na reivindicação de direitos. Leonardo Carneiro também é integrante da Ultras Resistência Coral, torcida antifascista ligada ao Ferroviário e pioneira na criação desse modelo de organizada no Brasil. Ele cita sobre a importância do posicionamento de torcedores em questões políticas sociais e ligadas ao esporte:
“A gente vê que, aos poucos, as pessoas vão percebendo que a política e o futebol são indissociáveis e o que acontece na esfera política vai interferir no esporte. Vai interferir, por exemplo, no preço do ingresso. Vai interferir nos direitos do torcedor. Vai interferir nas perseguições às próprias torcidas organizadas. Então as torcidas organizadas tradicionais vão percebendo que a política está ali presente e há toda uma política de tentativa de criminalização das torcidas, que faz parte de um processo maior, de tentativa de elitização desse esporte, de gentrificação, de tentar estabelecer um padrão de torcer, desrespeitando determinadas formas de torcer. Enfim, isso acabou levando as torcidas organizadas tradicionais também a se posicionarem politicamente, a fazerem ações políticas, participarem de manifestações políticas. A gente já viu isso, por exemplo, na Gaviões da Fiel, a gente já viu isso em outras torcidas se posicionando.”
Se os atletas e clubes foram protagonistas da relação entre o futebol e a política ao longo da história, os eventos esportivos também foram cruciais na mudança de alguns paradigmas. Exemplo disso foi a Copa do Mundo de Futebol Feminino que aconteceu na França em 2019.
A competição foi um marco na discussão da modalidade em todo o planeta, onde a qualidade técnica das atletas e o sucesso de audiência promoveram o debate sobre o espaço da mulher dentro do universo esportivo. Nos últimos meses, a criação de novas competições voltadas para a modalidade, a exibição de amistosos da seleção feminina na televisão aberta e a presença de mulheres em programas e grandes transmissões esportivas foram ações colocadas em prática, graças às discussões sobre o esporte.
A repórter esportiva Karine Nascimento destaca o crescimento do futebol feminino ao longo de 2019 e cita essa evolução como um ato político:
“Não o futebol feminino, mas as mulheres no esporte no geral, muito além do futebol feminino, já é uma questão política. Porque se a gente for pensar, e aí agora eu volto para o futebol feminino no Brasil, foi uma modalidade que passou quase 40 anos sendo proibida por lei. De 1941 a 1979, o futebol feminino era proibido por lei. Então não era só aquela questão de ser uma coisa mal vista pela sociedade. E só para fazer um comparativo, durante o mesmo período em que o futebol feminino era proibido por lei, a seleção masculina foi tricampeã mundial. Então se a gente pensar nessa participação feminina no esporte, só em acontecer isso já é por si só um ato político. Porque, se a gente for pensar nas Olimpíadas, por exemplo, antes não queriam permitir a entrada de mulheres nas Olimpíadas para não tornar o evento mais inferior, de certo modo. Então existiram muitas barreiras para que a participação feminina chegasse ao ponto que está hoje.”
O crescimento do futebol feminino é fruto da relação entre o futebol e a política. Porém, outras questões que envolvem a discriminação dentro do esporte também são discutidas nos dias de hoje, graças à importância desse vínculo.
Assim como o futebol, outras áreas da sociedade também possuem essa ligação muito próxima com a atividade política. E na quarta parte do especial Tudo é Política, você vai ver que a ligação entre ciência e política é mais próxima do que a gente imagina.
A terceira parte da série especial Tudo é Política teve produção e apresentação de Carolina Areal e Pedro Silva, e operação de áudio de João Pedro.