Vivemos em um momento de distanciamento da noção de política. Para boa parte da população, o fazer político está relacionado apenas à corrupção, ao desmonte e aos trâmites eleitorais. Mas será que entendemos de fato o que a política representa em nossas vidas?
Essa é a primeira parte da série de cinco episódios Tudo é Política. Neles, nós vamos trazer a relação da política com a arte, o futebol, a ciência e a imagem. Neste primeiro programa, nós vamos debater qual o significado por trás dessa palavra que para alguns é tão temida.
De acordo com Norberto Bobbio, em seu Dicionário de Política, o termo política é derivado do grego pôlítikós, que significa tudo o que se refere à vida da cidade, às relações sociais e ao que é urbano, civil e público. Aristóteles foi um dos grandes contribuidores para o campo da política. Para o filósofo, os objetivos principais da organização política estariam relacionados à coletividade e ao bem-estar geral. Foi Aristóteles quem cunhou a célebre frase de que “o homem é um animal político”.
A política surge na Grécia Antiga a partir da necessidade de criação de um sistema de organização das cidades-Estado gregas. É nesse contexto que começa a ser tratado o conceito de democracia direta em Atenas, principal centro da Grécia clássica. Para tomar as decisões relativas à vida em sociedade, eram realizadas assembleias das quais todos os cidadãos homens maiores de 18 anos podiam participar e votar.
O crescimento do contingente populacional e a extensão dos territórios acabou tornando esse modelo impraticável, levando em conta o tempo que seria gasto para que as decisões fossem tomadas a partir da opinião individual de cada cidadão presente na assembléia. O conceito de democracia representativa, no qual são eleitos cidadãos para representar determinadas parcelas da sociedade, surge como uma opção nos parlamentos europeus por volta do século XVII. Este é o modelo vigente no Brasil, organizado em um sistema pluripartidário.
A política e a vida em sociedade são conceitos intimamente relacionados. Sem um, não pode haver o outro. É o que explica a professora Irlys Barreto, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC):
“Tudo o que nós fazemos, no que nós nos comunicamos com outros, nós temos que fazer mediações, convencimentos. A própria palavra é uma forma de exercício da política. Então política quer dizer conviver coletivamente, não é uma condição só de poder e de representação. Essa separação que a gente faz entre política e vida cotidiana, casa e rua, são separações artificiais. Na realidade, a política está na nossa vida, está no lugar que a gente mora, está no modo como a gente caminha pelas ruas, no modo como a gente se relaciona com o outro, no modo como a gente gerencia o nosso condomínio. A noção de política vem de 'pólis', vem de cidade, vem de viver coletivamente.”
Uribam Xavier, cientista político e professor do departamento de Ciências Sociais da UFC, destaca a importância da política para o funcionamento da convivência coletiva:
“A vida em sociedade pressupõe que ninguém tem autonomia para viver por si só. Nós precisamos do outro e precisamos organizar essa nossa convivência em sociedade para que a gente possa ter funcionalidade na vida social, ou seja, as coisas têm que se organizar, e para as coisas também serem organizadas a gente tem que criar um conjunto de regras, que são as leis, ou um conjunto de costumes. A política, nesse sentido, mais amplo, pressupõe o envolvimento das pessoas no sentido da gestão da sua cidade, da sua rua, do seu espaço de convivência, das relações trabalhistas, e nem todo mundo tem esse entendimento de que pela via da política, a vida coletiva das pessoas é decidida.”
O momento de descrença na política que vivemos hoje é reflexo do distanciamento entre a população e as decisões que regem a vida coletiva tomadas pelos representantes eleitos. A professora Irlys Barreto salienta essa relação:
“Mesmo que a política esteja próxima de nós e a gente possa dizer que tudo é política na vida, as instituições funcionam com esse grau de distanciamento. Esse distanciamento entre quem eu escolhi e o que vai fazer por mim, o que vai me representar, fica num acesso mais opaco, mais difícil. Nós estamos vivendo um momento enorme de descrença na política e a população não acredita mais. Toda vez que a gente escuta noticiários - ‘houve corrupção, houve isso’ - há uma tendência a um descrédito, ou então a ideia de uma salvação, de que alguém vai nos salvar dessa maré de incompreensões.”
Algumas iniciativas buscam diminuir esse distanciamento, trazendo o fazer político para perto das pessoas. É o caso das associações de moradores, coletivos e grupos comunitários. Na democracia representativa, que é o modelo que nós temos estabelecido no Brasil, essas formas de organização apartidárias são fundamentais para o bom funcionamento da vida política.
A seguir, um trecho de um discurso da senhora Mira Alves que é do Movimento Sem Teto da Bahia. A Dona Mira Alves é uma liderança popular que luta há muitos anos pelo direito à moradia em Santo Antônio de Jesus, que fica a 187 km de Salvador:
"Vieram os arquitetos do Ciência Sem Fronteiras, deram apoio, foi tudo muito bonito, muito lindo. Depois apresentaram os projetos, até tridimensional. Aí lá vem Monte Sagrado Projeto, gastaram dinheiro com perfuração de solo, tudo perfeito. Quando tiram a gente para aluguel social, dão um chute e um ponta pé na gente e diz que o terreno é inviável para construção porque tem entulho e é impossível construir. Só que ao lado tem uma construção de uma casa de material de construção e que tá lá há muitos anos e nunca desabou. Só pra gente é que não dá. Tinha até uma construtora que estava até certo, tinha nome de construtora, tinha dinheiro, tava tudo certo. Morreu aí, né?! Mas levam a gente pra aluguel social, 250 reais, três anos depois aumentam para 300 reais, que não dá pras pessoas se manterem com esse dinheiro. Pessoas me ligam 2h da manhã para dizer que estão sendo expulsas quando o aluguel atrasa. Isso é muito desrespeito. Tem também a questão das mortes que aconteceram em Escada e que não foram poucas. Tantos jovens negros foram assassinados pela questão da discriminação racial. Isso é demais, nós não vamos aceitar! Moradores de Escada, esse terreno é nosso!"
Essa fala da Dona Mira Alves é importante pra lembrar que política não deve ser reduzida à política partidária. Política é a forma como administramos nossa vida coletiva, nossa convivência em sociedade. Afinal, nós precisamos do outro para a nossa vida funcionar.
O cientista político Uribam Xavier destaca que, no Brasil, além do cenário de descrença, o passado colonial do país tem influência na participação política da população:
“Nós temos no Brasil uma herança colonial, que as pessoas mais exploradas são descendentes de uma relação colonial que, na sua origem, foi extinta da política e da participação de riqueza coletiva. Nós somos um país formado com uma base escravista, onde o escravo não é cidadão, ele não é gente, o que ele produz não é apropriado por ele, o seu corpo não lhe pertence, portanto nós temos essa herança em que essas pessoas vítimas do racismo, da exploração, sempre foram tratadas como pessoas menores, destituídas do direito de cidadania. Portanto, tem aí um componente psicológico que é essa dominação que faz as pessoas serem um subalterno, um inferiorizado em frente à vida política, e isso vai sendo alimentado. Essa exclusão social, que é o que o pensador português Boaventura de Sousa Santos diz, nós temos na sociedade um fascismo social que é essa negação de direto às pessoas e a negação da participação. É como se tivesse um segmento de classe dentro da sociedade que tem direito a tudo e tem direito, inclusive, de ter ódio àqueles que são diferentes, àqueles que sempre foram explorados. Isso no Brasil é muito forte.”
Esta foi a primeira reportagem da série especial Tudo é Política, produzida pela Rádio Universitária FM. Nos próximos episódios, você vai poder entender a relação da política com a ciência, a imagem, a música e o futebol.
A primeira parte da série especial Tudo é Política teve produção e apresentação de Carolina Areal e Caroline Rocha, e operação de áudio de José Raimundo Lustosa.