No Brasil, 83,6% da população possui uma rede de abastecimento de água. Quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada. Já 46,8% da população não é atendida por uma rede de esgoto. Os dados são de diagnóstico realizado em 2018 e publicado em 2019 pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.
E esses números podem piorar. É o que temem especialistas entrevistados pela Rádio Universitária FM, pois no dia 15 de julho, o presidente da República aprovou um Projeto de Lei que reorganiza os serviços de abastecimento de água e de saneamento do país. Este novo marco legal foi aprovado pela Câmara em 2019 e pelo Senado no dia 24 de junho deste ano. Jair Bolsonaro fez onze vetos no Projeto de Lei, que agora retornará ao Congresso Nacional para nova análise. Caso seja regulamentado, poderá privatizar 99% da água potável e 90% dos sistemas de esgoto do Brasil nos próximos 12 anos.
Segundo Marcos Montenegro, engenheiro e coordenador do Ondas - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento, a prestação do serviço de água e esgoto acontece hoje no Brasil em três diferentes modelos. No primeiro, companhias estaduais são responsáveis, o que acontece com mais frequência no país. A Cagece, Companhia de Água e Esgoto do Ceará, é um exemplo. O segundo modelo diz respeito à prestação de serviço por parte de autarquias municipais, como é o caso do Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Sobral. Já no terceiro modelo, a responsabilidade é concedida total ou parcialmente ao setor privado, como explica Marcos Montenegro:
"Essas três alternativas convivem hoje, sendo que, atualmente, a prestação por meio de concessionária privada é amplamente minoritária. O que o Projeto de Lei que foi aprovado pelo Senado faz é tornar mais difícil a contratação das empresas estaduais de saneamento pelos municípios e praticamente induzir que os municípios contratem empresas privadas por meio de concessão. Esse é possivelmente o objetivo claro do Projeto, é facilitar a vida das companhias privadas de saneamento e tornando essa opção a opção, digamos, preferencial."
De acordo com Lígia Melo, professora de Direito Administrativo e Legislação Urbanística da UFC - Universidade Federal do Ceará, a nova lei abrirá concorrência entre empresas públicas e privadas.
"O que muda é que o novo marco torna obrigatória a abertura de licitação envolvendo empresas públicas e privadas. Ou seja, empresas públicas não poderão mais ser contratadas diretamente, que era o que ocorria no marco legal anterior. Elas terão que entrar num sistema de concorrência, concorrencial com a iniciativa privada pra executar os serviços de saneamento. Dessa forma, municípios ou estados terão que fazer um sistema de concorrência com a abertura pra empresas privadas por meio de licitação, com as interessadas devendo-se comprometer a uma meta de universalização do serviço."
Um dos vetos feitos pelo presidente Jair Bolsonaro teve recepção mista da Câmara dos Deputados. Na versão alterada do Projeto de Lei, concessões a empresas públicas não poderão ser estendidas, como era previsto inicialmente, e a abertura de licitações deverá acontecer logo ao fim dos contratos. Em sessão virtual, deputados se opuseram ao veto afirmando que essa mudança irá facilitar a privatização total do serviço de água e saneamento, afetar empresas públicas e gerar processos na Justiça devido aos contratos já firmados.
A privatização desses serviços já aconteceu em outras regiões e, em algumas, teve impactos negativos. No Chile, a entrega das reservas ao setor privado gerou uma forte crise hídrica. Por lá, falta água para irrigação de plantações e para o consumo humano, o que gera sofrimento para a população. Além disso, a privatização é um dos fatores que têm influenciado na diminuição nos níveis totais de água no país. Atualmente, a Presidência do Chile trabalha em um plano de adaptação em que um dos objetivos é entregar a propriedade da água para o Estado.
De acordo com o engenheiro Marcos Montenegro, empresas privadas da Inglaterra enfrentam pressão pública devido à cobrança de tarifas muito altas. Na Carolina do Sul, Estados Unidos, famílias precisam andar por quilômetros para conseguirem água potável, resultado também do alto custo das tarifas.
O acesso à água e saneamento básico é um direito humano reconhecido pela Organização das Nações Unidas desde 2010. O professor da Faculdade de Direito da UFC William Marques amplia esse conceito:
"O direito à água potável e ao saneamento básico tem recebido, quer no plano internacional, por meio de tratados e convenções, ou até mesmo no âmbito interno, em constituições de vários países, o tratamento de legítimo direito humano fundamental, na medida em que aumenta a consciência do seu caráter essencial para a manutenção da dignidade da pessoa humana, que é a base axiológica dos direitos fundamentais, e a própria sobrevivência planetária."
Apesar disso, o acesso à água potável e saneamento ainda não é universal, ou seja, não atinge 100% da população. Diversas regiões do planeta não recebem a prestação desses serviços, seja porque a estrutura não está presente ou por conta de tarifas altas, deixando milhares de pessoas em condições de vida precárias e prejudiciais.
Na pandemia do novo coronavírus, indivíduos sem acesso à água e saneamento se tornam mais propensos à infecção, uma vez que lavagem de mãos e higiene pessoal são algumas das principais medidas de prevenção. A transmissão do coronavírus por fezes já foi comprovada, e muitos vivem em regiões com frágil ou nenhum saneamento.
A longo prazo, esse cenário problemático pode se acentuar. Em meio à competitividade, empresas privadas não buscarão lucratividade em locais onde há maiores índices de pobreza. É o que afirma a pesquisadora Lígia Melo:
"A tendência que nós verificamos nesse caso é de que a busca pela maior lucratividade vai inibir qualquer investimento em regiões mais pobres do país. E isso fará com que mais de 5 mil municípios fiquem sem investimento em água e esgoto, comprometendo, além da população local, rios que devem passar por esses locais, que terão mais despejo de esgoto sem tratamento. Já poderíamos ter compreendido que comportamentos públicos que fragilizam a presença do estado só fragilizam a nossa condição humana num país como o Brasil. A presença da iniciativa privada, sob a perspectiva do subsídio cruzado e controle das agências, terminou não dando certo. Isso não quer dizer que não pudéssemos ter parcerias com a iniciativa privada, mas não pra entrega total de bens e serviços."
Com as alterações feitas no Projeto de Lei pelo presidente Jair Bolsonaro, o texto voltará ao Congresso Nacional em reunião sem data definida para uma nova análise. Deputados e senadores poderão aceitar ou não os vetos do presidente.
Reportagem de Mateus Brisa com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira