22/04/20

Pela tela, pela janela: o excesso de monitores na “quarentena”

O Brasil é o terceiro país do mundo que passa mais tempo conectado à Internet. Cada brasileiro passa, em média, nove horas e dezessete minutos conectado todos os dias (Foto: Reprodução/ Internet)

Acordou, pegou o celular, ligou o computador e assim passou mais um dia, praticamente inteiro, exposto a alguma tela. Essa tem sido, cada vez mais, a rotina das pessoas no mundo. Um universo nem tão novo assim, já que o tempo em frente ao celular, computador e TV já era grande para muita gente. Com a propagação do novo coronavírus (Sars-CoV-2) e a consequente adoção de medidas de distanciamento social, a tendência é que quase todas as atividades humanas, de uma ou outra maneira, sejam mediadas pelas telas.

De acordo com o Relatório de Visão Global do Digital 2020, uma parceria da We Are Social com a Hootsuite, o Brasil é o terceiro país do mundo que passa mais tempo conectado à Internet. Cada brasileiro passa, em média, nove horas e dezessete minutos conectado todos os dias. Fica atrás apenas das Filipinas e da África do Sul. Os dados são anteriores às medidas de distanciamento social, o que pode indicar que, atualmente, o período em frente às telas deve ser ainda maior.

Tudo no computador

A primeira coisa que a cientista política Joyce Miranda Leão Martins faz ao despertar é pegar o celular para acompanhar o noticiário político. Ela, que vive numa pensão em São Paulo, não conta as horas do dia dedicadas a algum dispositivo eletrônico. “Eu não tenho TV, então o computador fica o dia inteiro ligado praticamente. O celular, quando eu estou lendo, eu deixo de lado. Toda a rotina está baseada no computador. Agora mesmo, eu estou ministrando um curso online e vou dar uma palestra, além de terminar um artigo para um e-book. Se vou ler em idioma que não conheço, novamente: dicionário de língua online”, descreve.

A pesquisadora viu seu dia a dia ser bastante transformado após a chegada da pandemia de Covid-19 ao Brasil, principalmente no que diz respeito ao tempo de acesso tanto ao celular como ao computador. Acostumada a passar as manhãs em casa até o horário do almoço, Joyce aproveitava o espaço de um centro cultural para estudar durante a tarde e parte da noite. “Nesse período, eu ficava sem acesso a computador. Ficava só lendo e, de vez em quando, pegava o celular pra ver alguma coisa ali no Facebook, mas às vezes até ele ficava de lado assim por horas”, relembra.

Antes da quarentena, a cientista política Joyce Miranda Leão Martins passava horas sem acesso a computador ou celular (Foto: Reprodução/ Internet)

Antes das medidas de distanciamento social, a cientista política Joyce Miranda Leão Martins passava horas sem acesso a computador ou celular (Foto: Reprodução/ Internet)

Desde o início do distanciamento social, a cientista política já leu seis livros: quatro físicos e dois em pdf. “O lazer e o trabalho estão muito associados ao computador. A coisa que eu faço distante dele é cozinhar e ler livros físicos”, explica. Até mesmo os exercícios – as aulas de zumba –, ela pratica pelo computador. “E estou fazendo quatro vezes por semana, porque senão a pessoa pira”, complementa.

Mundo hard news

Por sua vez, o jornalista Emílio Moreno, que já fazia home office, tem ficado em média 12 horas por dia em frente às telas. A principal mudança, segundo ele, é o aumento do tempo no computador, pois o uso do smartphone, antes mesmo do distanciamento social, era constante. “Mas, agora, isso se acentuou, porque você não tem mais hora certa pra nada, porque tá todo mundo remoto, e aí a gente, na rotina de televisão [onde trabalha], acaba tendo uns horários não muito regrados, porque tudo tá acontecendo ao mesmo tempo”, explica. Além da função na TV, ele trabalha freelancer para clientes que, coincidentemente, estão voltados para a pandemia. “Tá tudo muito hard news”, define Emílio se referindo à expressão usada no jornalismo para falar de notícias "quentes", "de última hora".

O profissional relata cansaço devido ao aumento de exposição às telas: o baque maior se deu principalmente na primeira semana em casa. “Foi bem puxado, porque a gente tava muito no calor do isolamento social, do início dos casos. Eu tive insônia e, atualmente, tenho sentido muita dor nas costas, muscular mesmo, de tensão”, reclama.

Para relaxar, Emílio procura se desconectar, mas assume ser difícil. “À noite, o que eu tenho tentado fazer é ver memes na Internet, assistir a filmes, séries, programas de besteira na televisão, besteirol mesmo: até ao Big Brother eu passei a assistir. Fazia uns 12 anos que eu não via, mas eu voltei pra buscar coisas que me distraiam, me tirem da rotina”, confessa. As lives semanais com os amigos e a família também têm se tornado outro hobby do jornalista, que procura manter os laços afetivos.

Como profissional da comunicação, avalia que os conteúdos pensados para a Internet nesse momento são de serviços de utilidade pública, com o objetivo de orientar, e também dar conforto à população. “Então, você vê desde Netflix dando sugestões de filmes da Amazon Prime até a Globoplay liberando todo seu acervo infantil pras crianças em casa com os pais, que precisam trabalhar”, analisa. Para ele, a grande mudança em curso é a da maneira com que as pessoas vão passar a encarar o trabalho. “Todo mundo está percebendo que pode desenvolver o seu trabalho de qualquer lugar, com raríssimas exceções. Muita gente falava, em palestras, da transformação digital nas empresas, mas nunca se tinha conseguido colocar isso numa escala, porque sempre houve muita resistência. E essa pandemia tá impondo isso pra todos”, projeta.

Crianças em casa

Para quem tem filhos, o período forçado em casa pode ser desafiador. A bióloga Tallita Tavares busca limitar o tempo de tela do filho João Bento, de quatro anos, com a ajuda do marido. “No home office, tentamos nos revezar no cuidado com nosso filho, pois ele ainda não brinca bem sozinho. Na verdade, estamos tentando incentivá-lo tanto para encorajar sua independência como para podermos atender melhor às demandas do trabalho, que são muitas”, explica.

A bióloga Tallita Tavares encontrou uma forma de tornar a exposição aos eletrônicos um hábito saudável para a família: o acesso a jogos que envolvem movimento do corpo (Foto: Arquivo pessoal)

A bióloga Tallita Tavares encontrou uma forma de tornar a exposição aos eletrônicos um hábito saudável para a família: o acesso a jogos que envolvem movimento do corpo (Foto: Arquivo pessoal)

Antes mesmo da pandemia, Tallita se preocupava com o excesso de exposição de João Bento aos monitores, principalmente com relação à televisão. Chegou a desligar completamente o aparelho antes do distanciamento social, mas só durou uma semana. “Minha intenção era chegar em uma hora por dia, mas devido à correria da rotina, normalmente nosso filho tinha de três a quatro horas de TV”. A pesquisadora acredita que com a presença dela e do marido em casa a regulação do tempo de tela está mais eficiente. “Estamos presentes para sugerir alternativas sempre que ele pede para ver TV. Conseguimos fazer as refeições todos juntos de forma mais tranquila, passamos mais tempo juntos e acaba que o João Bento até pede menos TV”, avalia.

A família também encontrou uma maneira de tornar a exposição aos eletrônicos um hábito saudável. Duas vezes por semana e nos fins de semana, resgatam o Xbox, uma marca de consoles de videogame, com o uso do Kinect, um sensor de movimentos. “Podemos participar de vários jogos que envolvem movimento, o que é bom para ele e para nós. O difícil é fazer ele entender que esse tempo de jogo também é tempo de tela, pois ele sempre argumenta que filme é diferente de jogo. De qualquer forma, vem funcionando e curtimos bons momentos juntos”, comemora.

Mil em uma

Professora de duas escolas particulares e gravando aulas para uma editora, Izabel Diógenes está com a rotina bem apertada. Mãe de Maria Gabriela, de 11 anos, e Miguel, de sete anos, tenta driblar o tempo para dar conta de tudo. “A pessoa que me auxilia nas tarefas domésticas não está vindo, e eu estou tentando conciliar trabalho, filhos e tarefas domésticas”, explica.

Izabel acredita passar cerca de 11 horas por dia entre computador, TV e celular. “Pelo computador, eu monto slides para aulas, pesquiso e gravo aulas; pelo celular, olho as redes sociais; e, pela TV, assisto aos noticiários e filmes”. No trabalho, tudo é muito novo para ela quando o assunto é tecnologia. “São variados recursos que estou aprendendo a usar, como gravador de áudio e plataforma de tira-dúvidas. Há momentos de estresse, mas agradeço pelo aprendizado e pelo principal: estar saudável”.

A professora de português izabel Diógenes regra o tempo das crianças diante das telas delegando atividades domésticas (Foto: Arquivo pessoal)

A professora de português Izabel Diógenes regra o tempo das crianças diante das telas delegando atividades domésticas (Foto: Arquivo pessoal)

Com relação aos filhos, confessa se desgastar bastante na busca por uma rotina organizada. “Muitas vezes, não consigo relaxar. Meu companheiro, algumas vezes, diz: ‘Izabel, não liga pra isso’”. Com as crianças de férias, a situação está um pouco menos difícil. “No momento, estão mais à vontade. Mas, nas aulas, mesmo online, tem hora para acordar, assistir às aulas, jogos eletrônicos, leitura e desenhos. Tudo é combinado antes”. Outra maneira de regrar o tempo das crianças diante das telas é delegando funções: elas arrumam as próprias camas, tiram roupas do varal, fazem sanduíches e lavam louças.

Os prejuízos da tecnologia

Para Michelle Steiner, professora do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do Programa de Ações Integradas pela Vida (PÃIM), o número de horas em frente às telas tem crescido à medida que caem o tempo e a qualidade do sono e da interação social. “O excesso no uso é comprovadamente prejudicial, sobretudo quando substitui pessoas, relações e rotinas de atividades essenciais à saúde”, aponta.

A psicóloga alerta para a dependência tecnológica. Sinais desse quadro podem ser a dificuldade em se desligar das mídias sociais, necessidade e urgência de receber ou dar likes constantemente e se ver aprovado socialmente através das mídias, a atualização de informação repetidas vezes e envio de mensagens em excesso e, ainda, o aumento do hábito de compras online e de tempo em jogos. “A consequência desse tipo de adicção, pelo uso compulsivo, pode ser depressão, impulsividade, redução da autoestima, sensação de solidão e aumento do isolamento social, mesmo que a comunicação entre pessoas seja facilitada por essas tecnologias”, enumera.

A psicóloga Michelle Steiner aconselha a não usar dispositivos eletrônicos para se alienar do que está gerando angústia e tristeza. (Foto: Arquivo pessoal)

A psicóloga Michelle Steiner aconselha a não usar dispositivos eletrônicos para se alienar do que está gerando angústia e tristeza (Foto: Arquivo pessoal)

Steiner convida a todos a modificarem hábitos e a realizarem um upgrade tanto pessoal quanto interpessoalmente. “Não use o celular ou a televisão para evitar ou para se alienar do que está gerando angústia e tristeza. Sentir-se triste e com vontade de chorar é esperado. Acolha-se! Abrace a si mesmo!”, aconselha.

Serviços digitais

Mas, nem tudo pode ser ruim quando o assunto é exposição a telas de smartphones, computadores e TV. A partir da pandemia, a tecnologia deve se expandir de forma muito mais rápida, de acordo com Rainara Carvalho, professora de Ciência da Computação no Campus da UFC em Quixadá. “Lojas, pequenos negócios, prestadores de serviço que antes não tinham nenhum serviço digital, agora estão adotando tecnologia. Nem que seja a mais simples, como aplicativos de mensagens, por exemplo, o WhatsApp”, analisa.

Segundo a professora, o desafio dos desenvolvedores de software e das empresas de tecnologias será facilitar o uso dos seus serviços, para as mais diversas gamas de usuários: de jovens a idosos, passando por pessoas com baixa experiência no uso de tecnologia. “Se um aplicativo não apresenta uma boa usabilidade e desempenho, por exemplo, ele pode ser facilmente substituído por outro concorrente”, sentencia.

Áreas como a da Computação Ubíqua e da Internet das Coisas se tornam ainda mais promissoras, de acordo com Carvalho. “São paradigmas que trazem a tecnologia para o cotidiano do usuário, utilizando a Internet como forma de conexão, com o objetivo de facilitar suas tarefas sem distraí-lo, explica. Para Rainara, essas áreas aliadas às abordagens de Machine Learning e Big Data têm muito a contribuir tanto para soluções em serviços quanto para ajudar no combate à Covid-19.

Reportagem de Síria Mapurunga

Tags:, , , , , ,

Deixe uma resposta

*