Após muita espera de cordelistas e poetas, no dia 19 de setembro de 2018, a literatura de cordel foi, finalmente, reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Mas o que isso significa?
Gisa Carvalho, doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora sobre a literatura de cordel, explica a importância desta decisão. “O reconhecimento institucional é importante como a marcação de um lugar de relevância. É quando o cordel se faz ‘existir’, porque está presente e é reconhecido como patrimônio. O cordel passa a ser visto, lembrado como parte de nossa cultura, que carrega e constrói memórias e tradições”, afirma.
No entanto, apesar de sua importância, durante muito tempo o cordel foi tido como inferior em relação à literatura tradicional, estigma que teve origem no fato de ser um tipo de manifestação cultural popular e por ter a oralidade como principal linguagem. Por esse motivo, a literatura de cordel não recebeu muito apoio do governo ou de instituições. “O cordel sempre existiu e resistiu independente de governos, academias ou editoras... Sendo que com muito mais dificuldade (econômica, principalmente, mas também cultural, sendo marginalizada pela cultura letrada)”, expõe Gisa Carvalho.
Com o recente reconhecimento, o que se espera é que haja algumas mudanças em relação a esse cenário, com o maior apoio a produção e o reforço desta cultura por parte do governo e de outras instituições. No entanto, o cordelista, editor e poeta Klevisson Viana, que já tem 35 livros e quase 200 folhetos publicados tem algumas ressalvas em relação ao assunto. “As formas que o Estado poderia apoiar é criando concursos que favorecessem a publicação de novas obras, patrocinando eventos de difusão dessa arte. Essa é a melhor forma de fomentar essa arte, criando condições para que ela cresça. Mas sem interferir no processo criativo do autor, que é o que acontece muitas vezes quando um título como esse é dado”, ressalta.
Apesar de possíveis problemas, Gisa Carvalho acredita que esse reconhecimento ainda tem o potencial de trazer diversos benefícios. “Eu não sei ainda que mudanças podem ocorrer, mas penso que, como patrimônio, será mais fácil que o cordel seja visto, que haja mais investimentos nas diversas práticas que movimentam a poesia de cordel. Além disso, é um estímulo para a produção”, pondera a pesquisadora.
Definição
O cordel é integrante da cultura brasileira desde a sua colonização, tendo sido trazido ao Brasil pelos portugueses. Grande expoente da cultura popular, os cordéis ficaram intimamente ligados ao cenário nordestino, ganhando muita força e virando tradição em estados como Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Apesar disso, ele também se espalhou para outros estados do país.
O cordel é um gênero literário popular, que tem o objetivo de refletir a realidade da população, discutir sobre os mais diversos temas e, inclusive, trazer informação às pessoas. Uma de suas maiores marcas é a oralidade, conforme explica o professor e pesquisador Gilmar de Carvalho. “Cordel é literatura da voz. Tem as marcas da voz. Uma poesia que tem musicalidade, que tem um ritmo e traz o encantamento. Feita para ser lida em voz alta... Cordel é o trancoso, a estória de amor, a notícia de jornal que ganha nova roupagem”, define ele.
Além da oralidade, a musicalidade e a poesia são algumas das principais características dessa literatura que ressaltam o caráter artístico do cordel. “Uma forma de narrar o próprio Nordeste, as notícias, de recontar histórias além do cânone. É a forma como mulheres e homens se expressam artisticamente”, declara Gisa Carvalho.
Para Klevisson Viana, a literatura de cordel ganha mais legitimidade ao abordar temas que não seriam vistos em outras mídias. “Além de ter essa linguagem coloquial, uma linguagem mais acessível às pessoas, ela também tem esse lado independente. A literatura de cordel não está atrelada a um grupo econômico, por isso aborda a opinião da comunidade, do próprio poeta, então eu tenho uma independência muito grande ao abordar questões que são mais delicadas”, explica.
Novos horizontes
Mas se engana quem acha que o cordel é limitado aos folhetos e continua sendo distribuído da mesma forma, indo na contramão das plataformas digitais, como a televisão e rádio. Ou, ainda, de novas tecnologias, como internet e mídias sociais.
Apesar de ser mais conhecido pelos folhetos impressos e as xilogravuras, para Gisa Carvalho o cordel vai além. “Apresenta-se em diversas formas, muito além do folheto: são livros, é na internet, em vídeos, em CDS, blogs,twitter, whatsapp e por aí vai”, explica.
Klevisson Viana reitera, também, a importância de se ver a literatura de cordel como um “gênero literário”, que vai muito além de um único suporte ou forma de apresentação. “Ele pode estar no livro, pode estar no teatro, pode estar em qualquer suporte, a internet é só mais um suporte. As maiores editoras do país, inclusive, publicam textos de cordel em formato de livros”, ressalta o cordelista.
Para Gisa Carvalho, a internet tem ajudado, inclusive, a difundir a literatura de cordel. Exemplos disso são cordelistas como Bráulio Bessa, Jarid Arraes e Salete Maria. “As mudanças (novas mídias) são recursos que se oferecem às e aos poetas e todo mundo usa como acha mais adequado e de acordo com suas habilidades. Jarid, por exemplo, tem uma loja virtual. Bráulio foi descoberto postando vídeos no youtube. Salete Maria disponibiliza seus versos no blog Cordelirando. Poetas de Campina Grande têm um grupo de whatsapp (Grupo da Glosa) onde enviam versos, conversam, lançam motes... As estratégias são as tecnologias disponíveis”, explica a pesquisadora.
Reportagem feita por Maryana Lopes com orientação de Carolina Areal