Nos últimos anos, o mundo assistiu a um movimento semelhante em diversos países. Políticos de extrema-direita foram eleitos ou chegaram muito próximos disso. Com eles, vieram o nacionalismo exacerbado e o ódio ao diferente. O presidente Donald Trump fechou o cerco aos imigrantes nos Estados Unidos (EUA). Na Europa, a saída do Reino Unido da União Europeia, que ficou conhecida como Brexit, abalou uma das comunidades internacionais mais sólidas.
A pandemia do novo coronavírus parece ter acelerado esse processo contrário à globalização, que havia sido a tendência desde o fim da Guerra Fria. É comum se deparar com notícias de países fechando suas fronteiras, retendo cargas de produtos essenciais no combate à Covid-19 e retirando seu apoio a organizações que trabalham com a cooperação internacional.
Para entender o atual cenário e o que o futuro pós-pandemia reserva neste sentido, conversamos com dois especialistas: Fábio Gentile, pós-doutor pelo Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo (USP); e Uribam Xavier, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Os dois entrevistados são professores do Departamento de Ciências Sociais da UFC.
Fábio Gentile é pós-doutor pelo Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo (Foto: Reprodução/YouTube)
Rádio Universitária FM: Nos últimos anos o mundo presenciou uma crescente de movimentos nacionalistas, alguns culminando no protecionismo de fronteiras. Como isso tem relação com a crise sanitária atual? Qual a previsão para esses movimentos nacionalistas no período pós-pandemia?
Fábio Gentile: Realmente, nos últimos anos, temos assistido ao crescimento de movimentos nacionalistas “soberanistas”. Penso nos movimentos que surgiram no seio da Europa, tendo como alvo o fim da comunidade europeia e da moeda única. Mas acredito que vai ser muito difícil voltar a um mundo marcado por fronteiras protecionistas. Os movimentos “soberanistas” irão continuar a pressionar as organizações supranacionais. Porém, o mundo pós-queda da União Soviética é caracterizado por um processo de colaboração, integração e dependência cada vez mais estrito. Existem novas formas de “dependências” econômica, produtiva e financeira. Penso na dependência que temos com a China.
Uribam Xavier: Os movimentos nacionalistas e protecionistas antes do [novo] coronavírus tinham um caráter muito mais de excluir aqueles indesejados que estavam se deslocando no mundo em busca de melhores condições de vida. São os refugiados políticos ou, então, pessoas, como no caso mais concreto da fronteira do México com os EUA, que queriam pular a fronteira em busca do "El Dorado" do mundo, que seriam os EUA. Como as pessoas muitas vezes localizadas em países oprimidos, e que são exploradas pelo que chamamos de “países do primeiro mundo”, não conseguem ter essa qualidade de vida, elas se deslocam, elas tentam entrar mesmo que de forma não oficial ou clandestina. Essas pessoas são indesejadas. As fronteiras se abrem para o capital, mas não se abrem para as pessoas. Daí esse nacionalismo tem, muitas vezes, somente o interesse em receber pessoas que têm alta capacidade de conhecimento, que possam lhe agregar valor, mas não para receber pessoas que vão em busca de emprego, melhores condições de vida, que são inclusive tratadas de uma forma não muito “cortês”. Estou usando um termo muito impreciso, mas pra dizer que elas são tratadas com xenofobia pelas pessoas locais que enxergam nas pessoas de fora uma ameaça ao seu emprego. No tempo do [novo] coronavírus, essa questão está sendo tratada de uma forma muito semelhante, na medida que fechar a fronteira significa uma proteção, mas agora essa proteção é de outra natureza, já que nós estamos vivendo uma pandemia, e o isolamento social é uma das medidas que deve ser tomada. Portanto fechar as fronteiras é tida como uma medida de proteção, mas não é da mesma natureza que fechar as fronteiras em um momento em que você não tem uma pandemia no mundo. Na verdade, nós temos uma pandemia no mundo que é de miséria e de pobreza que se naturalizou, e esses pobres, esses miseráveis não podem circular no mundo.
Uribam Xavier é doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (Foto: Arquivo Pessoal)
RUFM: Como a pandemia afetará, e está afetando, as relações exteriores, incluindo as relações comerciais e as relações de colaboração entre os países?
Fábio Gentile: Assim como a “guerra fria” entre EUA e URSS [União das Repúblicas Socialistas Soviéticas] foi marcada por uma “estratégia da tensão”, estamos assistindo a uma guerra ideológica entre EUA e China sobre a origem da Covid-19. Faz parte da disputa para a consolidação da nova ordem mundial. Não acredito, todavia, que a pandemia vai mudar totalmente o rumo do mundo contemporâneo. Talvez, o que vai ser feito é uma reconversão parcial do aparelho produtivo de cada nação para encarar eventuais novas pandemias.
Uribam Xavier: Nesse momento, pelo que a gente viu, a pandemia é mundial. Nós estamos vivendo uma crise humanitária. Nessa crise humanitária, o que nós não vimos entre os países foi uma política solidária, de um país ajudar o outro ou socializar conhecimento, equipamento, remédios. O que assistimos até esse momento foi um jogo muito duro e sujo de uma pirataria de produtos comercializados, como aconteceu quando o Brasil solicitou e comprou da China vários equipamentos, inclusive os respiradores. Nesse processo de entrega, quando o avião fez escala nos EUA, ele foi barrado e os EUA seguraram os equipamentos, oferecendo um preço maior aos chineses, caracterizando aí uma prática de pirataria. Uma prática de desrespeito às relações internacionais, falta de solidariedade. Ao mesmo tempo, nós estamos vendo agora que os países estão, todos eles, correndo pra achar uma vacina para dar um fim a esse processo de pandemia de forma mais eficiente, mas o que nós estamos vendo são laboratórios privados correndo. Inicialmente, se diz que o principal objetivo é para cuidar das pessoas, para que as pessoas não morram, mas na realidade o interesse é muito mais comercial. A gente poderia ter feito a junção de vários países, colocando seus esforços a serviço da humanidade, no sentido de se encontrar uma vacina produzida por vários países e que pudesse ser tida como uma descoberta da humanidade para a humanidade, que pudesse chegar sem custo para todo mundo. Mas não, é uma vacina que vai ser patenteada e, possivelmente, quem encontrar a primeira vacina e patentear vai querer vender para outros países e vai querer faturar. Ou seja, se perdeu aí essa ideia de colaboração, de colocar a vida como principal valor diante das relações. Portanto, na minha visão, a pandemia mais do que afetar, ela coloca de forma muito clara e muito vista como as relações acontecem no dia a dia. É uma relação de competição, as relações sociais são competitivas. Isso se reflete nas contradições que nós temos, pois inicialmente se achou que esse vírus afetava muito mais as camadas ricas, que viajavam, andavam de avião, quando, na verdade, ele é um vírus que afeta todas as classes, mas que chega de forma muito mais danosa para os pobres, porque são menos protegidos, moram geralmente em favelas, em bairros pobres sem saneamento básico, onde o sistema de saúde público já foi colapsado antes mesmo de a gente estar falando em colapso do sistema de saúde.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) incentiva a cooperação internacional entre os países. Atualmente, o diretor-geral da OMS é o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus (Foto: Denis Balibouse/Reuters)
RUFM: Como a Organização Mundial da Saúde (OMS) pode contribuir neste momento?
Fábio Gentile: A meu ver, a OMS cometeu muitos erros gravíssimos desde que iniciou a pandemia. Informações erradas e muita confusão nos protocolos de combate à difusão do vírus. Basta pensar no uso da máscara. A princípio, não foi considerada necessária, enquanto alguns meses depois foi dito que era indispensável. Não precisa estudar um vírus, embora novo, que afeta o aparelho respiratório, para entender que a principal forma de contágio é pelo nariz e pela boca. Era lógico desde o início da pandemia que a máscara é uma ferramenta fundamental de proteção. A OMS parece mais um órgão burocrático que científico-sanitário. Tomara que aprenda a lição para o futuro. Precisamos de informações mais certas e protocolos mais rigorosos.
Uribam Xavier: A OMS está dando uma contribuição muito importante neste momento, no sentido de orientar quais as medidas mais adequadas que devem ser tomadas, como o isolamento. Ela tem todo um protocolo para um período de pandemia, de fazer estudos, pesquisas. Se ela tivesse colaboração de todos os países que são signatários de suas recomendações e que investissem dinheiro para atuar como uma espécie de organismo internacional que pudesse, então, dispor de equipamentos para distribuir para os países, seria uma contribuição ainda maior, mas eu creio que é exatamente isto: os países membros não querem que ela atue como uma instituição de governança no mundo, que pudesse, além de uma orientação, ter uma ação prática, principalmente nesses momentos de grandes crises, de pandemia. Hoje, na realidade, ela sofre é um esvaziamento. Agora mesmo, em plena crise mundial, com os EUA se tornando o epicentro da crise, o [presidente] Trump anunciou que tiraria a contribuição dos EUA para a OMS porque ele estava descontente com o trato que a Organização estava dando ao País, inclusive fazendo discurso político na briga que os EUA têm com a China. A OMS serve também para analisar a atitude de alguns governos, como o governo do [presidente Jair] Bolsonaro no Brasil, que está tendo uma atitude genocida em não seguir os protocolos da Organização Mundial. Esses protocolos se baseiam em pesquisas científicas e estudos que estão sendo feitos na área da saúde. A partir disso, esses estudos acabam virando protocolo, recomendação para a área de saúde em tempos normais e não normais. Então, eu acho que para a OMS dar um contribuição maior ela precisaria ser reorganizada e democratizada.
Reportagem de Beatriz Gonçalves com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira. As respostas dos entrevistados podem ter sofrido pequenas modificações para melhor leitura e compreensão.
