No segundo semestre de 2019, o litoral nordestino do Brasil foi atingido por grandes manchas de petróleo cru, que viriam a atingir também faixas litorâneas do Espírito Santo e do Rio de Janeiro. Durante a cobertura do incidente pelos meios de comunicação, órgãos governamentais, pesquisadores e representantes de setores econômicos foram ouvidos, mas pouco espaço foi dado aos testemunhos de moradores diretamente atingidos pelo derramamento.
É o que aponta a pesquisa Vozes Silenciadas: a cobertura do vazamento de petróleo na costa brasileira, realizada pelo Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, que analisou a cobertura de três grandes jornais impressos a nível nacional, quatro de alcances regionais, além dos três principais telejornais das três maiores emissoras brasileiras. A pesquisa também se debruçou sobre o conteúdo webjornalístico relacionado ao assunto da Agência Brasil.
Iara Moura, coordenadora do Intervozes, explica que a ideia do estudo surgiu por ocasião de uma missão deliberada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, do qual o coletivo faz parte, nos estados de Sergipe e da Bahia. “Ouvimos muitos relatos das comunidades atingidas de que havia uma invisibilização da mídia em relação a elas; de que, no máximo, as fotografias, capas dos jornais e reportagens de tv traziam o impacto do vazamento sobre o meio ambiente, como se fosse separado das populações. Lembro da fala de uma liderança do movimento de marisqueiras de Sergipe: ‘Nós também importamos’”, recorda Iara.
A pesquisa detectou uma predominância na cobertura de falas de órgãos governamentais e discussões sobre como aquele incidente afetaria atividades como o turismo. Houve, também, a valorização da figura do “voluntário” na limpeza dos locais afetados. Pouco destaque foi dado às comunidades que viviam nas zonas atingidas pelo petróleo derramado, que dependem diretamente daquele ecossistema para a sobrevivência.
“O mercado midiático está muito concentrado em um modelo comercial, em grandes veículos localizados, sobretudo, na região sudeste. Por outro lado, há também um não reconhecimento das pescadoras, pescadores, marisqueiras, artesãos que vivem nas proximidades do locais atingidos, como sujeitos de direitos. E há também o não reconhecimento dessas pessoas como especialistas. Elas sabem, melhor do que ninguém, qual está sendo o impacto desse vazamento de petróleo”, pontua Iara Moura.
Danos
O derramamento de petróleo cru no litoral nordestino foi particularmente danoso às mulheres, pescadoras e marisqueiras, que viram sua fonte de renda prejudicada com esta tragédia socioambiental. Eliene Pereira “Maninha” é pescadora e líder da Associação de Moradores do Sítio Jardim, em Fortim, município a 117 km de Fortaleza, além de coordenadora da Articulação Nacional de Pescadores (ANP). “Comemos peixe contaminado do Rio Jaguaribe. Ficamos sem ter como vender nosso pescado, porque todo mundo nos ignorava, dizendo não querer comprar porque vinha do Rio Jaguaribe. As mulheres perderam autonomia, porque não tinham mais como ter seu dinheiro. Continua sendo muito difícil”, ilustra Maninha.
A pescadora também aponta a falta de espaço na imprensa para que os povos tradicionais pudessem relatar o que estavam passando. “Pouco espaço foi dado para que nós pudéssemos nos manifestar, dizermos como estavam os nossos territórios, nossas comunidades, como estávamos vivendo. Estávamos, não. Eu continuo dizendo: como nós ainda estamos vivendo”, lamenta.
Cristiane Faustino é coordenadora do Instituto Terramar e testemunhou os problemas que o desastre trouxe para o litoral cearense, particularmente nas cidades de Icapuí, Aracati e Fortim. “O desastre causou sofrimento emocional, pois prejudicou de forma brutal a vida das praias, rios e mangues e espécies presentes nesses ambientes, entes com os quais as comunidades estabelecem uma relação de pertença, afeto e identidade ancestral”, destaca, entre outros dramas, Cristiane.
A coordenadora observou o silenciamento sofrido por essas pessoas na mídia e sugere caminhos. “A mídia deve buscar compreender as realidades dessas comunidades para além do senso comum de que o litoral do Ceará é apenas a beleza natural e uma imagem exótica de pescador e jangada. Ali vivem sociedades com histórias e temporalidades próprias e relacionadas aos ecossistemas e a biodiversidade”, reforça Cristiane.
Mesmo com os primeiros relatos de manchas de óleo tendo acontecido em agosto de 2019, apenas no mês seguinte o fato foi noticiado. Ainda não se sabe ao certo o responsável pelo desastre. O governo federal editou uma medida provisória (MP 908/19) que estabelecia um auxílio emergencial no valor de R$ 1.996,00, mas houve queixas de que essa ajuda não chegou às mãos de muitos que precisavam. Em maio deste ano, a medida perdeu validade.
“Hoje, os danos se somam aos da pandemia do coronavírus. A fome e a insegurança alimentar estão entre as primeiras preocupações. Praticamente não houve andamento de políticas públicas robustas para enfrentar as consequências do derramamento, nem mesmo sua causa foi resolvida. Não estão construídas as condições para estudos, pesquisas e monitoramento dos impactos e sequer o auxílio emergencial do Governo Federal tem sido aplicado com a agilidade necessária”, relata Cristiane Faustino.
Reportagem de Gustavo Castello com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira.