30/09/20

Mafalda completa 56 anos com humor crítico e social

Mafalda é uma garota inconformada diante do contexto mundial e suas tirinhas possuem um humor peculiar, com conteúdo fortemente político (Foto: Reprodução/Internet)

Atualizado às 12h de 30/09: O cartunista Quino faleceu aos 88 anos, em decorrência de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) sofrido na última semana. A informação foi confirmada pelo editor Daniel Divinsky ao jornal argentino Clarín.

Você conhece a Mafalda? A personagem é uma garotinha prodígio que questiona o mundo, faz as pessoas pensarem e aborda discussões que a sociedade costuma esconder. Sempre inquieta, destemida e com uma consciência política e social impressionante, Mafalda completa 56 anos de história em 2020.

Criada em 1962 pelo cartunista Quino, Mafalda faria parte de um cartoon de propaganda que deveria ser publicado no diário Clarín, que é um dos jornais de maior circulação da Argentina. No entanto, o jornal rompeu o contrato e a campanha foi cancelada. Apenas em 29 de setembro de 1964 foi publicada a primeira tirinha de Mafalda no semanário Primera Plana.

Neste período, tanto a Argentina como outros países sul-americanos enfrentavam um domínio de governos autoritários. A personagem conseguiu notoriedade por defender os ideais de democracia e fazer oposição às práticas de governos vigentes na época, como explica Pedro PJ Brandão, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), e pesquisador da área de quadrinhos.

“Bem, se você parar para pensar que a Mafalda ela nasceu em 64, no ano do golpe militar aqui no Brasil, a gente tem esse momento, esse ‘Zeitgeist’ na América Latina principalmente desse ímpeto autoritário dos governos. Então a Mafalda não foge desse pressuposto, ela tem um pai, o Quino, é uma figura muito vinculada ao movimento sindicalista. Então ela atravessa esse meio século muito relevante e atual. Eu fico em parte feliz, porque são meio que mensagens que se vinculam a um posicionamento político que particularmente eu acho poderoso no campo social, mas em meia parte também eu fico meio triste, assim, eu acho que eu queria que ela fosse mais relevante do que atual".

Mafalda foi criada por Quino, que além de cartunista era também ilustrador gráfico e humorista (Foto: Reprodução/Internet)

Mafalda foi criada por Quino, que além de cartunista era também ilustrador gráfico e humorista (Foto: Reprodução/Internet)

Mafalda aborda temas amplos, relacionados aos direitos das crianças e das mulheres, e sobre o cotidiano da classe média argentina. Contudo, na maioria das vezes, as suas críticas demonstram um certo grau de contrariedade aos regimes impostos na América do Sul na época de sua publicação. Paulo Ramos, jornalista e professor do departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), acredita que o humorista Quino foi responsável por inspirar outros cartunistas a incorporar em suas tiras temas políticos.

“Do ponto de vista das tiras, e aí a Mafalda é uma tira, uma tira cômica, tem exemplos sim de tiras bastante politizadas. Na Argentina, tem uma tradição das tiras de lá serem bastante políticas, bastante críticas com os assuntos dos noticiários. Os elementos políticos não escapam de lá. O que a Mafalda parece ter de importância nesse cenário é que a personagem, por meio do Quino que é o criador dela, incorporou esses elementos políticos e criou uma espécie de escola a partir daí. Outros autores se basearam nesse jeito, vamos dizer assim, de produzir as histórias e passaram também a incorporar temas políticos, temas do noticiário, temas sociais, enfim… a vida da Argentina como um reflexo visto nas tiras publicadas nos jornais".

É importante ressaltar que o protagonismo infantil em tiras cômicas não é uma realidade apenas do universo da Mafalda. Charlie Brown e Calvin são outros exemplos de personagens infantis que buscam respostas para os seus complexos questionamentos. O professor do curso de Jornalismo da UFC e coordenador da Oficina de Quadrinhos, Ricardo Jorge, comenta sobre a inserção de crianças como personagens principais nos quadrinhos.

“Um certo protagonismo infantil nos quadrinhos surge mais ou menos no final do século XIX na Europa, nos Estados Unidos com personagens… no caso dos Estados Unidos com os sobrinhos do capitão e na Europa e na Alemanha como Juca e Chico, ‘Max und Moritz’. Mas de algum modo esses protagonistas aprontavam muito mas eram os sobrinhos do capitão, tinham pais, e de algum modo se a gente pode estabelecer algum paralelo com a Mafalda no mundo dos quadrinhos ou das tirinhas talvez pudesse fazer com o Calvin, da tirinha do Calvin e Haroldo do Bill Watterson, porque os dois são questionadores, principalmente em relação aos pais, as regras do mundo, a sociedade… Mas eu acho, a minha leitura, é que a Mafalda do ponto de vista político ela leva uma boa vantagem em relação ao Calvin".

Em Buenos Aires há um roteiro turístico que visita as estátuas de personagens dos quadrinhos, incluindo Mafalda (Foto: Eduardo Epifanio/WelcomeArgentina)

Em Buenos Aires há um roteiro turístico que visita as estátuas de personagens dos quadrinhos, incluindo Mafalda (Foto: Eduardo Epifanio/WelcomeArgentina)

Para o professor Paulo Ramos, as tiras de Mafalda além de conter críticas específicas da sua época de circulação, abrangiam também narrativas que podem ser facilmente aplicadas no contexto atual.

“Há dois conteúdos, vamos dizer assim, retratados nas tirinhas da Mafalda. O primeiro era um reflexo direto da época. Então, Mafalda era uma grande crítica da televisão, ela preferia o rádio, porque a televisão manipulava. Mafalda era uma crítica ao poder de imperialismo dos países desenvolvidos, porque o olhar que se tinha era que os Estados Unidos exerciam uma influência importante no país. Mafalda era uma grande crítica de determinados momentos políticos da Argentina, porque vivia uma ditadura. E tem as outras tiras da Mafalda que fazem críticas a assuntos mais universais, você criticar a saúde do planeta Terra é um assunto que hoje tá talvez mais em pauta ainda do que na época que foi produzida a história. Então acho que existem esses dois elementos: existem tiras que ainda são atuais, e tem tiras que fazem reflexo direto da época e que talvez precisasse contextualizar um pouco mais pra poder ser entendida".

Em Buenos Aires, capital da Argentina, Mafalda virou nome de praça e é um ponto turístico da cidade. Suas tirinhas foram publicadas em mais de 30 países e traduzidas para 15 idiomas diferentes. Mesmo deixando de ser publicada em 25 de junho de 1973, Mafalda ainda está presente em exposições, livros didáticos e em campanhas com temas que continuam atuais.

Reportagem de Davi Holanda com orientação de Fabrício Girão e Igor Vieira

Tags:, , , ,

Deixe uma resposta

*