[Atualizado em 20 de maio, às 09h17]
Além da saúde, a pandemia da Covid-19 trouxe a milhões de estudantes brasileiros mais um motivo de preocupação: as condições de preparação para o Enem - Exame Nacional do Ensino Médio e o debate sobre a manutenção do calendário oficial das provas.
Com a suspensão das aulas presenciais pelas escolas, estudantes em todo o Brasil passaram a assistir às aulas remotamente, seja por computador, seja por outros dispositivos com acesso à Internet. O problema é que esse acesso não é igualitário no Brasil. Pesquisa feita em 2018 sobre o uso de tecnologias de informação e comunicação em domicílios brasileiros, divulgada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, mostra que 98% das famílias da classe A possuem computador em suas residências. Quando se analisa as classes D e E, o número despenca para apenas 9%. Já o número de famílias com acesso à Internet na classe A é de 99%, muito superior aos 40% detectados nas classes D e E.
Diante desta realidade, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) pleiteiam o adiamento do Enem para impedir que alunos sejam prejudicados. As duas entidades criaram uma petição online e buscaram medidas judiciais para pressionar as autoridades competentes. O Ministério da Educação (MEC) sinaliza que pretende manter o calendário como está, tendo lançado, inclusive, uma peça publicitária em defesa da manutenção do exame para os dias 1° e 8 de novembro.
Doutor em Educação, o professor aposentado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) Idevaldo Bodião defende que o calendário do exame seja alterado. Bodião também acumula experiência na área como gestor, tendo sido Secretário de Educação e Assistência Social de Fortaleza. Atualmente é professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e coordena um projeto de extensão que prepara estudantes do bairro Serrinha, de Fortaleza, para o Enem.
“A manutenção do atual calendário das provas do Enem, além de ser desnecessária, é extremamente perversa com os estudantes das escolas públicas, porque, diferentemente das ‘reconhecidas boas escolas’, eles não terão os acessos ilimitados à Internet de banda larga, não terão espaços reservados e tranquilos para estudos e nem todos os suportes que lhes permitam se dedicar, exclusivamente, às questões escolares”, avalia o professor.
Escolas e cursinhos tiveram que se adaptar
Ser professor de aulas remotas não é uma novidade para Eli Castro, tendo experiência em ensino à distância desde 2007, ministrando aulas de Português. Professor de uma grande escola de Fortaleza, Eli relata a dificuldade que alguns colegas têm com essa nova situação. “Eu tenho colegas que são da época do giz. É difícil para esse professor, com uma idade mais avançada, sair do giz ou pincel. Quem nunca passou 40 minutos diante de uma câmera, falando para uma lente, é muito difícil se concentrar. Eu ouço muitas queixas de colegas quanto à dificuldade”, revela.
Eric Holanda é aluno da Faculdade de Direito da UFC e dirige um projeto de extensão chamado Curso Paulo Freire, que oferece aulas de preparação para o Enem por um preço mais acessível. O curso conta com a ajuda de professores voluntários que são estudantes da própria Universidade. Com a suspensão das aulas presenciais e poucos recursos financeiros, os professores tiveram que fazer uso de plataformas que estivessem à disposição, para não gerar custos extras. “A gente pediu para gravarem as aulas. A gente armazena na nuvem para eles [os estudantes] terem acesso e divulga quando vão ter as aulas por meio de uma tabela”, explica.
Com a palavra, os alunos
Francisco Matheus quer entrar no curso de Odontologia. Aluno de escola pública, ele ingressou no Curso Paulo Freire para reforçar os estudos. Agora, com as aulas suspensas, busca alternativas. “O ensino à distância estava sendo um pouco complicado para mim, porque eu não era acostumado com esse método. Sempre gostei mais de aulas presenciais, nas quais posso participar”, confessa.
Matheus tem acompanhado o conteúdo pelo celular, mas as condições da sua Internet não são boas. Por essa e outras razões, o estudante defende o adiamento do Enem. “A falta de familiaridade com o método do ensino à distância vai complicar muito a vida dos estudantes. Muitas residências não têm acesso à Internet. Sem falar nas pessoas que não tem acesso a mecanismos digitais”, reflete.
Beatriz Nunes é aluna de uma das principais escolas particulares de Fortaleza e quer ser médica. Com as férias do meio do ano antecipadas, ela e seus colegas se preparam para as aulas remotas que terão na volta do período letivo. Beatriz conta com uma boa infraestrutura para os estudos, mas reconhece que há problemas maiores em manter o Enem no final do ano. “Nem todo mundo tem um privilégio de ter acesso à Internet, à plataformas que facilitem o estudo. É querer disparar uma desigualdade que já existia, e eu sempre vou ser contra qualquer coisa que amplie a desigualdade”, assegura.
Impasse em Brasília
Em reunião virtual com líderes do Senado no último dia 05 de maio, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, teria argumentado que até novembro o problema com a pandemia do novo coronavírus estaria resolvido, e que, por isso, não vê razão para o adiamento do Enem. Segundo senadores que participaram da reunião, o ministro ainda afirmou que o exame não foi feito para corrigir injustiças sociais.
Enquanto o debate público aumenta, tramita no Congresso o Projeto de Decreto Legislativo nº 167/2020, de autoria dos deputados federais Tábata Amaral (PDT-SP) e Israel Batista (PV-DF), visando à suspensão do calendário do exame. Os parlamentares acreditam que a manutenção do calendário das provas pode ampliar as desigualdades existentes no país.
Já o Senado Federal aprovou, por 75 votos a 1, o projeto da senadora Daniela Ribeiro (PP-PB), que prevê o adiamento automático de provas e outros meios de acesso ao ensino superior em casos de reconhecimento de estado de calamidade pública, nesta terça-feira, dia 19 de maio. A matéria segue, agora, para a Câmara dos Deputados.
Por sua vez, estudantes de todo o Brasil se mobilizam e tentam ampliar a adesão para intervir na decisão do MEC. O site Sem Aula, Sem Enem foi criado para fazer pressão sobre os deputados estaduais e mapear as escolas onde os estudantes estão realizando campanha pelo adiamento da prova.
Reportagem de Gustavo Castello com orientação de Raquel Dantas e Igor Vieira