J.K.Rowling, autora da saga Harry Potter, vem sendo acusada de transfobia desde 2019. Em uma série de posts em suas redes sociais, a escritora se posicionou sobre a questão de gênero e sexo. A comunidade LGBTQIA+ reagiu ao considerar que os comentários invisibilizavam e negavam a existência das pessoas trans e não-binárias.
A polêmica causou impacto negativo nos fãs de Harry Potter, dando início a um debate intenso sobre a obra e o comportamento da autora: artista e arte podem ser separados quando um dos dois expressam preconceitos que já não condizem mais com a sociedade atual?
A cantora e produtora musical Angel History acha que não. Ela é uma pessoa não-binária e explica que a saga Harry Potter foi muito importante para a sua infância, mas que se decepcionou com o posicionamento da escritora e já não se identifica mais com a obra:
“É quase impossível assistir ao filme ou ler o livro sem lembrar do close errado [falar besteira ou exprimir preconceito]. Querendo ou não, ela é a grande artista por detrás dos livros, a história é dela. Pra mim foi bem complicado. Eu confesso que deixei de consumir bastante tudo ligado a ela, Harry Potter, Animais Fantásticos e Onde Habitam. É bem complicado, porque a gente não pode deixar de se posicionar. E eu acho que parar de consumir a arte dessas pessoas transfóbicas, racistas é importante, porque quando mexe no bolso é uma maneira delas se tocarem que a situação é grave.”
Para a professora do departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC), Irenísia Oliveira, há uma perspectiva em que obra e autor podem ser desvinculados:
“Em princípio, o artista se separa da sua obra uma vez que ele lança a obra ao mundo, ela fala aquilo que ele quis dizer e também fala aquilo que ele não pensou, aquilo que ele não falou conscientemente. Num certo sentido, a obra está sempre separada, ela sempre vai para o mundo separada do autor. Este nosso momento é que faz exigências, porque é um período mais atento aos preconceitos. Ele faz exigências tanto aos autores, quanto às obras. O autor ser preconceituoso, no caso, um autor mais antigo, então, a gente entende o contexto daquele autor, mas é mais difícil que se perdoe a obra, que continua propagando visões preconceituosas.”
Aqui no Brasil, o racismo na série infantil Sítio do Picapau Amarelo, do escritor Monteiro Lobato, também vem sendo motivo de debate desde 2010, quando o Conselho Nacional de Educação (CNE) apontou frases preconceituosas no livro As Caçadas de Pedrinho, lançado em 1933.
Diana Medina, mestre em Criação, Teoria e Mediação em Artes Plásticas pela Universidade de Toulouse, na França, frisa como as artes situam autor e obra em seu contexto histórico:
“A exemplo do Sítio do Picapau Amarelo, a obra do Monteiro Lobato, existem várias outras que tem um teor racista, de intolerância e de uma sociedade que hoje nós não nos reconhecemos mais. Mesmo porque a obra de arte é um produto da sociedade, é um produto do contexto cultural e social, então, ela vai reverberar essa estrutura racista, misógina, intolerante e não empática vai ressoar dentro do trabalho, dentro da produção e da obra artística. Então, é sempre bom olhar para as obras do passado, observar e aprender com elas, aprender informações sobre essas obras para ter uma compreensão melhor daquela obra. A ideia de isolar o artista como um criador genial e puro é totalmente inocente.”
Por causa dessa relação indissociável entre autor e obra, surge o questionamento sobre como lidar com as obras dos autores que já faleceram. No caso do livro As Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, o Ministério da Educação considerou que uma nota explicativa nas próximas edições junto com a formação dos professores para as questões étnico-raciais já são suficientes para que a obra continue sendo utilizada na educação infantil.
Olhando para outros exemplos de como lidar com as obras do passado, o estadunidense Matt Ruff escreveu o livro Território Lovecraft, lançado em 2016. A produção é inspirada no mundo fantástico criado por seu conterrâneo Howard Phillips Lovecraft no início do século XX.
H.P.Lovecraft é extremamente criticado pelo racismo em suas obras, porém Matt Ruff decidiu escrever seu livro indo contra os pensamentos preconceituosos de Lovecraft. Além disso, a obra de Matt foi adaptada pela HBO, canal de televisão por assinatura, para uma série que destaca a importância do movimento em defesa dos direitos civis dos negros nos anos 1950.
Observando como as artes também podem ser diretamente influenciadas pelo público, a professora Diana Medina chama atenção para um processo em curso:
“A sociedade já está interferindo nesse tipo de criação, porque quanto mais crítica a sociedade tiver, quanto mais atenta para as minorias, para o respeito ao outro, para a tolerância, para a conviviabilidade, quanto mais atenta a nossa comunidade estiver, mais isso vai ressoar dentro das obras artísticas”.
Reportagem de Danielle Gadelha com orientação de Raquel Dantas e Igor Vieira.