Tudo o que o mundo sabe até agora sobre a origem do novo coronavírus (Sars-Cov-2) é somente a ponta do iceberg. Apenas na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou que concluiu, na China, o trabalho preparatório de investigação sobre a origem da pandemia da Covid-19. No entanto, há uma posição entre os cientistas que parece unânime: a degradação ambiental é decisiva para que certos micro-organismos “pulem” de determinada espécie e cheguem até os humanos.
De acordo com Alexandre Costa, doutor em Ciências Atmosféricas pela Universidade Estadual de Colorado e professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE), todas as evidências em relação a vírus anteriores semelhantes apontam que o Sars-Cov-2 tem uma origem zoonótica. Segundo Costa, que tem um canal no YouTube sobre Mudanças Climáticas, a ocupação de ambientes silvestres pelas atividades humanas encurrala animais que carregam cargas virais específicas, aumentando a probabilidade do contato do ser humano e de animais de criação com esses vírus que estavam nos ambientes silvestres:
“Essa, talvez, seja uma questão ainda muito em aberto, porque, para um vírus tipicamente associado a uma determinada espécie silvestre chegar ao ser humano, isso pode se dar de maneira direta pelo contato ao comer, ao ser mordido, enfim, tem uma série de possibilidades. Seja pela via indireta: esse vírus pode transitar por hospedeiros intermediários. Essa talvez seja a grande questão ainda a ser entendida no caso do Sars-cov-2. Ainda não se sabe de fato qual o mecanismo pelo qual ele saltou até a espécie humana. Mas há uma série de hipóteses. Prefiro aguardar o que a ciência vai vaticinar a respeito e checar o que é que a Organização Mundial da Saúde conclui com as suas investigações.”
De qualquer maneira, o professor adverte que existe uma forte relação entre a crise sanitária e a ambiental: a mesma expansão da fronteira agrícola demandada para a produção de grãos e para a pecuária são causas do aquecimento global e também motor constante de pandemias e epidemias, tanto pela questão do desmatamento quanto pela questão do confinamento em massa de animais em espaços minúsculos por conta da indústria da carne.
Segundo a biológa Tallita Tavares, pesquisadora do Instituto de Ciências do Mar (LABOMAR) da Universidade Federal do Ceará (UFC) que atua em pesquisas na área de Ecologia Microbiana, cada espécie possui em seu corpo um conjunto de micro-organismos com o qual convive normalmente num estado de harmonia. Se há um desequilíbrio no corpo, se ele se encontra em situações adversas ou se entra em contato com outros micro-organismos, pode acontecer uma doença:
“É assim que uma doença pula de uma espécie pra outra. E, provavelmente, foi assim que o novo coronavírus passou de um animal, provavelmente um morcego, pra espécie humana. Que formas de contato podem fazer com que isso aconteça? Uma forma de contato mais íntima, porque isso envolve que certas parte do corpo estejam expostas como mucosas, por exemplo, que são partes que são mais permeáveis e que permitem a entrada do micro-organismo ou mesmo por via oral, pela via nasal. Então, possivelmente, se originou num contato desse com espécie selvagem que portava esse coronavírus, provavelmente, inclusive, sem causar doença nela, aliado à falta de condições de higiene. Isso então deixa mais forte esse contato. Perdura por mais tempo e possibilita com que esse micro-organismo novo que você entrou em contato tenha mais tempo pra se desenvolver e colonizar aquele novo hospedeiro.”
Nos próximos anos, a degradação do meio ambiente pode ainda favorecer o surgimento de novas doenças através de duas frentes, alerta Alexandre Costa. Uma delas seria pela perda de habitats tropicais. A Amazônia, por exemplo, é a floresta com maior biodiversidade e é também provavelmente, de acordo com o professor, o ambiente com maior microbiodiversidade do mundo. Isso faz com que ali exista uma quantidade muito grande de vírus com potencial para infectar seres humanos. Outra fonte possível de novas pandemias viria das altas temperaturas em regiões congeladas, como explica Costa:
“Pra quem não conhece, o permafrost é o solo congelado que ocorre basicamente cobrindo as amplas extensões do norte do Canadá, de grande parte do Alasca e a maior parte da Sibéria. O que acontece é que esse solo congelado funciona como uma espécie de freezer de matéria orgânica, tanto é que foram encontrados cadáveres de animais extintos há dezenas de milhares de anos como, por exemplo, mamutes. O que acontece é que, da mesma maneira como no freezer, se você abre o freezer, se você desliga o freezer, se você descongela, o que tiver dentro do freezer vai apodrecer. No caso do permafrost, é a mesma coisa. Se você impõe ao permafrost temperaturas anomalamente altas – e a gente teve agora uma onda de calor completamente anômala na Sibéria em que por vários dias você teve temperaturas médias em vastas extensões acima de 5 graus além do normal e com alguns locais com vários recordes de temperatura – o que acontece é que, dentro dessa matéria orgânica, você tem duas questões que são fundamentais pra gente entender. Primeiro é que a decomposição dessa matéria orgânica libera mais gases de efeito estufa. E outro ponto é que, ali, você tem diversas bactérias e vírus adormecidos, e a gente não sabe até que ponto isso pode representar uma bomba sanitária de grandes proporções."
Uma única saúde
Com o mundo parecendo uma panela de pressão com tantos possíveis focos de novas pandemias, o que poderíamos fazer para reverter esse cenário? Marcelo Soares, doutor em Geociências, pesquisador do LABOMAR e cientista-chefe do Meio Ambiente do Estado do Ceará (FUNCAP), lembra que o ser humano não pode ser visto desconectado da natureza:
“Nós não podemos esquecer que nós, os seres humanos, somos animais, somos mamíferos, somos primatas. Nós temos outras espécies aí que são nossas parentes, literalmente, na evolução. Então a gente não pode ver o ser humano desconectado da natureza. Essa visão do ser humano desconectado da natureza, ou seja, que ele não faz parte da natureza é que tem levado a esse problema. E pode ser só o começo de muitas crises porque se a gente não adotar isso, o que a gente vai ter é o seguinte: nas próximas décadas, são crises em cima de crises, o tempo todo, que vão gerar problemas econômicos, culturais, sociais e ambientais graves. E isso, inequivocadamente, vai aumentar a desigualdade social, a fome, a miséria, distúrbios de natureza psicológica nas pessoas, porque muitas pessoas não estão acostumadas a crises sucessivas das mais diferentes formas. E vem também chamar a atenção para a abordagem interdisciplinar e multidisciplinar, ou seja, todos os pesquisadores, gestores públicos, ONGs, empresas, de diferentes áreas, medicina, sociologia, química, zootecnia, engenharia de pesca: todo mundo [deve] interagir pra que a gente possa ter uma abordagem mais ampla.”
É o que também pensa a bióloga Tallita Tavares, que defende a abordagem One Health (Uma Saúde), termo para explicar que não há saúde em separado: é preciso pensar no bem-estar dos seres humanos, dos animais e do meio ambiente como um só:
“A abordagem One Health é baseada numa tríade que pensa na garantia da saúde do meio ambiente, na saúde animal e na saúde humana. A ideia é que essa tríade garanta, que ela diminua o surgimento e a propagação de novas doenças, o que é muito importante, porque a descoberta de novos medicamentos, descobertas de novas vacinas são muito úteis pra conter o problema quando ele já existe, enquanto a abordagem One Health é mais útil em evitar que esses problemas surjam, e isso é essencial.”
Reportagem de Síria Mapurunga