Você já tomou chá de burro ou comeu angu de ovo?
Mais do que o cuscuz e a rapadura, a culinária cearense traz outros sabores desconhecidos pela maioria das pessoas. A longa lista de receitas muda de acordo com a região, seja ela serra, sertão ou litoral.
É exatamente isso que o livro publicado pela Editora Senac do Ceará Além da Peixada e do baião: Histórias da alimentação no Ceará apresenta. Organizado por Valeria Laena, Fatima Farias e Domingos Abreu, o livro é um dos produtos de uma pesquisa que ocorre desde 2008.
A diretora de Museus do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e coordenadora do Projeto Comida Ceará, Valeria Laena, explica os resultados apresentados no livro:
"Em relação aos frutos do mar a gente encontrou muitos mariscos. A gente continua encontrando muitos alimentos feitos da mandioca, do milho e do trigo. E o que a gente procurou colocar no livro também é um pouco dessa nossa identidade com relação às expressões próprias que a gente utiliza nessa cultura alimentar. Tem uma parte do livro que a gente tá chamando de “contos e misturas”, mistura é um termo muito próprio cearense, muito identitário que não significa justamente várias coisas, mas pode significar uma coisa só, a proteína."
63 municípios no Ceará foram percorridos pelo Projeto Comida Ceará, com a realização de entrevistas orais e um trabalho fotográfico das descobertas do percurso.
Alguns utensílios artesanais utilizados no preparo dos alimentos foram coletados ao longo da pesquisa e devem compor uma exposição futuramente.
Certos alimentos e receitas são importantes e próprios de uma região. Um dos exemplos é o chá de burro em Camocim, como aponta a pesquisadora Valeria Laena:
"Dentro da pesquisa a gente percebeu, por exemplo, o chá de burro em Camocim. É um alimento muito especifico do lugar e as pessoas costumam ir ao mercado de manhã provar e levar para a merenda. Novamente aí o termo muito nosso: merenda, a merenda dos estudantes."
De origem indígena, a tapioca é um dos principais pratos procurados pelas pessoas. É o que afirma o Google Trends, onde a iguaria foi a receita com o maior número de buscas entre os cearenses em 2017.
Um dos maiores polos onde a tapioca é vendida em Fortaleza é o Centro das Tapioqueiras criado em 2002. Maria Núbia Correia Lima, conhecida como Dona Núbia, começou a fazer tapioca há tantos anos que nem lembra a data exata.
Mesmo sem a aprovação do marido ela insistiu na ideia e conseguiu o dinheiro para começar o negócio. O nome do esposo já falecido foi, durante muitos anos, o nome da Tapiocaria.
Mas o que era Tapiocaria José Gadelha virou Tapiocaria da Xuxa. O nome foi trocado após a visita da apresentadora Xuxa à Tapiocaria em 1989, como conta Dona Núbia:
"Tiraram foto e ela disse “eu vou mandar a foto” e eu disse “e eu vou botar o nome Tapiocaria da Xuxa”. Ela disse “pode botar” e eu disse “não, só vou botar quando chegar essa foto”. Muita gente disse que era mentira, montagem. Ela fez a gravação, passou no programa dela e ela dizendo: Gente, isso aqui foi em Fortaleza. Xuxa agora é a rainha das Tapiocas."
No Centro das Tapioqueiras, Dona Núbia oferece hoje 100 sabores de tapiocas, entre doces e salgadas. Além disso, ela prepara galinha caipira, panelada, carneiro, creme de camarão e outros pratos tipicamente cearenses:
"A tapioca Xuxa é carne do sol, queijo, bacon, calabresa, ovo, orégano, tomate, mas tem uma tapioca que sai muito aqui, carne do sol com queijo. Aí tem a tapioca de Romeu e Julieta, tem a de nutella que é muito gostosa também, nutella com queijo e aí vai."
Valorizar a culinária cearense também representa valorizar a cultura local. Vân Régia começou a vender pratinhos na calçada para sair de uma dificuldade financeira.
Hoje, dona do Culinária da Van, ela trabalha com ingredientes locais, como a macaxeira e o milho. Autodidata, Vân Régia explica como surgiu o interesse pela culinária regional:
"Na realidade, foi a realização de um amor mostrar essa comida e trabalhar com esses insumos tão saborosos. Porque assim a gente tem uma riqueza sem tamanho de insumos, fazer essas misturas com o regional é um grande prazer. A gente tem resultados incríveis com os nossos insumos e valorizar a nossa gastronomia é como se fosse a minha meta."
O cardápio do restaurante é montado pensando na diversidade regional presente no próprio estado, como ela explica:
"A carne do sol e a macaxeira: essa junção desses dois sabores são os carros-chefes do meu restaurante, mas o cearense também ama os frutos do mar e eu me inspiro quando eu vou montar o cardápio. Eu tento pegar um pouco do sertão, um pouco do mar e com a serra. A gente tem várias regiões com gastronomias diferentes, isso no mesmo estado."
Está em tramitação o processo estadual para tornar o baião de dois um patrimônio imaterial do Ceará. A iniciativa é semelhante a que considera o acarajé um patrimônio imaterial da Bahia.
Reportagem de Karoline Sousa com orientação de Natália Maia