16/07/24

A presença negra em um dos maiores eventos geek do Brasil

A sala “Black Heroes” no Sana é dedicada exclusivamente aos super-heróis e personagens negros (Foto: Rafael Santana/ Rádio Universitária FM)

Rafael Santana
Especial para a Rádio Universitária FM

A segunda parte do Sana terminou neste domingo, 14, após três dias de muita agitação no Centro de Eventos do Ceará. Mais de 81 mil pessoas passaram pelo local, alcançando um público recorde em comparação às outras edições. O evento é dividido em duas partes e acontece anualmente há mais de 20 anos. Em 2024, o primeiro momento aconteceu no final de janeiro.

Considerado o maior evento geek do Norte e Nordeste, o Sana acontece em Fortaleza e conta com salas temáticas, jogos, stands de expositores, atividades de entretenimento e espaço para adoção de animais. Marcam presença os empreendedores, os ativistas, os alunos de escolas públicas e os chamados cosplayers.

É o caso de Lourdes Euflauzino, empreendedora e artista digital, conhecida pelo nome artístico de Lou. A jovem de 20 anos, além de comercializar produtos alinhados com a representatividade preta no mundo nerd, faz cosplay adaptados de personagens famosos.

“Quando eu comecei o cosplay eu fiquei receosa porque eu não tinha nenhuma referência no Sana, mas as pessoas vem começando a ter um olhar mais carinhoso para a participação crescente de pessoas pretas dentro desse universo, e isso é muito incrível.”, afirma.

Ela relata que já passou por situações de desconforto pela versão preta dos personagens, mas que, em contrapartida, a receptividade foi também bastante positiva. “Me sinto muito mais acolhida no evento hoje em dia”. Esse ano, uma das representações escolhida por Lourdes foi a da personagem Hatsune Miku. 

Lourdes se aventura no cosplay há 4 anos (Foto: Rafael Santana/Rádio Universitária FM)

Lourdes se aventura no cosplay há 4 anos (Foto: Rafael Santana/Rádio Universitária FM)

Ela explica que o processo de adaptação é um pouco trabalhoso porque dificilmente você encontra alguma referência da versão preta da animação. “Eu foco nos detalhes, desde o cabelo afro até o trançado. Nesse processo, eu gosto de pensar no que eu quero, o que me representa, e quais as referências que a galera tá procurando. Eu gosto de me ver no personagem”, pontua.

Lou explica que é preciso mais representatividade preta no mundo nerd, e também em eventos com essa temática por todo Brasil. “A melhoria só vai acontecer quando a galera desse nicho se conscientizar que cosplay não é sósia, mas sim uma adaptação do que representa você”.

Além disso, ela destaca que o mundo dos animes precisa trabalhar os esteriótipos negros com mais responsabilidade. “A forma como é feita soa ofensivo para nós”, finaliza. As representações de personagens negros no Japão, pais pouco miscigenado e de principal referência de cosplay aqui no Brasil, além de incomum, são cheias de estereótipos racistas.

Black Heroes: a sala feita para pretos

A sala Black Heroes contava com exposições, vendas, cenários para fotografia, palco e uma programação diversa (Foto: Rafael Santana/Rádio Universitária FM)

A sala Black Heroes contava com exposições, vendas, cenários para fotografia, palco e uma programação diversa (Foto: Rafael Santana/Rádio Universitária FM)

Com 4 edições de trajetória no Sana, a sala denominada “Black Heroes” é dedicada exclusivamente aos super-heróis e personagens negros. O ambiente busca debater e valorizar a temática da representatividade racial na cultura geek local, nacional e internacional.

Jefferson Ferreira, coordenador do afrogeek no Sana e um dos fundadores do espaço, explica que a ideia nasceu quando se notou a falta de representatividade preta no evento, e com um grupo de amigos que tinha figureaction e animes negros, fundaram o Black Heroes.

“Desde sua criação, o público preto cresceu bastante e muitas pessoas importantes já pisaram aqui. É uma grande vitória toda essa aceitação, e ver a galera preta se sentindo representada é de muita gratificação”, pontua Jefferson.

Jefferson Ferreira em uma visita guiada para explicar todas as referências presentes na sala Black Heroes (Foto: Rafael Santana/Rádio Universitária FM)

Jefferson Ferreira em uma visita guiada para explicar todas as referências presentes na sala Black Heroes (Foto: Rafael Santana/Rádio Universitária FM)

A Black Heroes começou sendo o primeiro departamento do Brasil de afrogeek, e a primeira sala a colocar uma batalha de rima dentro desse espaço. Davidson Silva, conhecido como Deck no cenário local de Hip Hop, destaca a importância de expor a cultura negra nesses ambientes.

“Vê o pessoal de periferia, que também são os alunos de escola pública, tendo acesso gratuito a um evento de um bairro nobre com ingresso dedicado a esse público, entrando na sala e se sentindo parte do evento é muito lindo, os olhares deles brilham”, destaca Deck.

Uma mãe negra como destaque no Sana

A atriz internacional Tichina Arnold, que interpretou a Rochelle na série ‘Todo Mundo Odeia o Chris', foi uma das atrações principais desta segunda parte do evento. Os fãs brasileiros tiveram a chance de conhecer uma das mães mais queridas e amadas da dramaturgia.

O encontro de Tichina Arnold com a sua dubladora Guilene Conte foi um dos momentos mais aguardados no Sana (Foto: João Ferreira/Divulgação)

O encontro de Tichina Arnold com a sua dubladora Guilene Conte foi um dos momentos mais aguardados no Sana (Foto: João Ferreira/Divulgação)

Ao ser questionada sobre a importância da sua representatividade, como mulher e mãe negra em seu personagem, ela explica que sentiu sim a responsabilidade, mas que sua realidade não era tão diferente e distante da própria Rochelle. “Meu dever era dentro e fora das câmeras. Eu tinha uma filha de dois anos na época, eu precisava ser uma referência para ela”, pontua.

Ao lado de sua dubladora Guilene Conte, a atriz encantou todos que estavam presente com sua alegria e gratidão pelo carinho dos fãs brasileiros. O bate-papo teve aproximadamente uma hora de duração. Tichina também aproveitou para conhecer a sala Black Hereos durante sua passagem no Sana.

Ancestralidade presente no Sana

Além de representações da exposição de orixás — divindades cultuadas em religiões africanas e brasileiras de matriz africana — na Black Heroes, a comercialização de produtos desse conteúdo foi encontrada no Sana.

Tarciso Ferreira, designer e ilustrador, foi o responsável por representar de uma forma infantil, pop e lúdica, essa ancestralidade. “Senti a necessidade de mostrar essas religiões de uma forma que não era mostrado antes, de uma forma que alcançasse um público diverso, independente de qual doutrina seguisse”, afirma.

A loja de Tarcisio Ferreira era uma das poucas presentes no evento que trabalhava com a temática dos Orixás (Foto: Rafael Santana/Rádio Universitária FM)

A loja de Tarciso Ferreira era uma das poucas presentes no evento que trabalhava com a temática dos Orixás (Foto: Rafael Santana/Rádio Universitária FM)

Ele destacou que as pessoas se chocavam quando se deparavam com os produtos de orixás presentes no evento, e pela forma que eram representados chamou muita atenção. “Tentei mostrar o Exu, por exemplo, de uma forma diferente do que a grande maioria enxerga ele atualmente, como algo negativo.”

Tarciso explica que esse momento é muito necessário para que essas religiões, como candomblé e umbanda, apareçam mais, e ganhe mais admiração em um cenário de muita violência e intolerância religiosa contra essas doutrinas. “Existem artistas que trabalham com essa temática, mas o espaço para essa comercialização é ainda muito limitado em comparação a religiões predominantes”.

O Sana é um evento realizado através da Lei do Mecenato, por meio do Governo do Estado do Ceará e Secretaria de Cultura (Secult), e da Lei Rouanet, por meio do Ministério da Cultura. A primeira parte da edição de 2025 já foi confirmada, e irá ocorrer nos dias 24, 25 e 26 de janeiro.

 

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