O planejamento das cidades acompanha mudanças sistêmicas no modo de vida das populações ao longo do tempo. Quando surge uma doença com alto grau de impacto como a Covid-19, essas transformações deveriam ser aceleradas já que não há retorno possível a uma dita normalidade. O grande paradoxo hoje é pensar em espaços públicos e privados em que as pessoas possam conviver juntas, mas distantes. Em algumas cidades do mundo, medidas como a expansão de ciclovias, alargamento das calçadas, automação nos sinais de pedestres e fechamento de ruas e avenidas para carros são cada vez mais implementadas.
Entre as tendências arquitetônicas dos espaços de convivência, algumas soluções são observadas, como mesas de restaurante com protetores individuais e separação de espaços e cabines individuais para uso em reuniões virtuais, por exemplo.
Em Fortaleza, as possibilidades são enormes, segundo o arquiteto Lucas Rozzoline, vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará (CAU-CE). A cidade litorânea tem pontos a favor por causa da ventilação natural.
"O espaço público tem esse paradoxo da interação humana e do distanciamento. Poderíamos ter realmente praças mais bem preparadas para abrigar as pessoas, praças cobertas, arborizadas em que as pessoas pudessem talvez estar em um restaurante em uma praça arborizada e refrescante, não em espaços fechados com ar condicionado. Isso funcionaria também pra lojas, pra outros tipos de unidades, de comércio que não tivessem sempre vinculadas ao ar condicionado, porque o ar condicionado exige o confinamento, pra que ele tenha rendimento e bom aproveitamento energético. Enquanto na verdade nós em Fortaleza temos uma ótima ventilação se comparada com outras cidades do Brasil. Então poderíamos aproveitar isso nos projetos de maneira estratégica, porque seria favorável à melhoria da salubridade dos espaços e também diminuição do consumo energético relacionado ao ar condicionado e refrigeração de espaços."
No futuro, até mesmo a paisagem urbana pode ser profundamente transformada pela diminuição de ocupação das torres de escritórios. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 22% da população brasileira poderia trabalhar de casa. Rozzoline analisa o impacto para o mercado imobiliário.
"Claramente a gente vai ter que diminuir a aglomeração das pessoas. A gente sabe que pra uma unidade espacial imobiliária ser rentável, a gente deveria aumentar ao máximo a ocupação dessas unidades dentro, claro, de limites de salubridade. Esses limites de salubridade vão ser mais exigentes, então a quantidade de aglomeração de pessoas vai ser menor. E isso consequentemente pode inviabilizar certos empreendimentos, certas empresas, certos tipos de escritórios, de atividades. Então talvez valha a pena que essas empresas invistam em seus funcionários dentro de casa novamente."
Segundo a arquiteta urbanista Rafaella Albuquerque, essa realidade já é vista em São Paulo, com a devolução de pavimentos e às vezes prédios inteiros de empresas que se deram conta das vantagens de logística, produção e custo no home office. Nos escritórios, de acordo com a arquiteta, será necessária uma adaptação generalizada dos espaços de trabalho coletivos e espaços particulares: as plantas devem ser adequadas para modificações rápidas ou uso misto de espaços.
Mas esse, infelizmente, não é o cenário preponderante no Brasil. Hoje, a maior parte dos trabalhos exige o exercício presencial. Por isso, uma das questões centrais para a reformulação das cidades deveria estar focada nos deslocamentos, como aponta Rafaella Albuquerque.
"Na minha opinião, o foco não deveria ser apenas no pedestre ou motorista, mas no percurso e como fazê-lo de forma sustentável. E eu falo de sustentabilidade aqui na sua verdadeira vertente, ambientalmente, economicamente e socialmente aplicável. Por que o que adianta a gente ter boas calçadas, ciclofaixas e faixas exclusivas de ônibus quando a gente nem resolveu ainda o problema da periferização da população? Quando as grandes distâncias entre trabalho e onde moramos só aumentam e quando a infraestrutura não acompanha o ritmo do crescimento das cidades? O que o movimento forçado de instituir home office pra gente não congelar por completo a economia do País nesse período da pandemia nos mostrou é que a mudança tem que ser sistêmica e todos têm que fazer ajustes para que possa, de fato, ocorrê-la. O problema é que ninguém que tá ganhando quer perder."
Só em Fortaleza, de acordo com o Plano Plurianual 2018-2021 da cidade, mais de 40% da população reside em assentamentos precários, o que representa mais de um milhão de pessoas.
Isso significa que o isolamento seria um conceito fictício para uma realidade na qual as pessoas passam boa parte do tempo na rua, já que as casas, muitas vezes, não têm condições de abrigá-las com dignidade. Para a arquiteta Rafaella Albuquerque, o distanciamento social, nesse contexto, é desafiador.
"A Pandemia nos mostrou mais uma vez a fragilidade de países com grandes populações em situações precárias pro enfrentamento de crises de saúde. Quando não se consegue nem promover saneamento básico e o mínimo de atendimento de demandas fundamentais para a manutenção da saúde e bem estar de mais da metade da população, como a gente pode falar em cidade com distanciamento social, com regras de higiene que realmente seriam disseminadas a todos?"
Apesar de a realidade de Fortaleza ser bastante preocupante, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (SEUMA) informou que, por ainda estarmos no contexto da pandemia, o controle da doença é muito mais comportamental nesse momento, não se podendo falar ainda em plano urbanístico-arquitetônico pós-pandemia.
Reportagem de Síria Mapurunga