29/07/24

Dia Nacional do Funk é aprovado pelo Senado

Projeto de Lei cria o Dia Nacional do Funk, celebrado no dia 12 de julho (Foto: Ana Pinho/Instagram)

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Vitória Rassanth
Especial para a Rádio Universitária FM 107,9

 

No último dia dois (02) de julho, o projeto de lei (PL) 2.229/2021, que estabelece o Dia Nacional do Funk, foi aprovado pela Comissão de Educação e Cultura do Senado. Celebrado no dia 12 de julho, a data homenageia o Baile da Pesada, precursor da popularização do funk no país. O projeto foi proposto ainda em 2021 e aprovado pela Câmara dos Deputados em dezembro de 2023. Apreciado pelo Senado Federal, agora o Dia Nacional do Funk aguarda sanção presidencial.

Antes de ser uma festa, o Baile da Pesada foi um disco produzido por Ademir Lemos e seu parceiro Big Boy nos anos 70. Eles apresentaram seus hits no baile de mesmo nome, realizado no Canecão, casa de shows do Rio de Janeiro. Era uma época de transgressão e contracultura. A festa atraiu a juventude carioca e alcançou relevância nacional. Sucesso na história musical e cultural, o Baile da Pesada anunciaria o Movimento Black, envolvendo ritmos do rock ao soul e circulando grandes nomes do mercado fonográfico, como James Brown.

Conversamos com a antropóloga Luciane Soares da Silva. Ela é professora associada à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, e pesquisa temáticas como funk, racismo, pensamento social brasileiro e cultura urbana contemporânea:

Luciane Silva: “É interessante pensar como, na década de setenta, esse espaço foi ocupado por um público que tem uma adesão estética a uma ideia que podemos traduzir como orgulho negro. É importante considerar que a estética corporal, principalmente o cabelo, o black power, o estilo de roupas, têm relação direta com a luta dos movimentos estadunidenses pelos direitos civis, dos afro-americanos. Essa expansão do funk no Brasil, nesse primeiro momento muito conectado ao James Brown, é a tradução de um sentimento de luta contra o racismo, de luta pelos direitos. Acho que é uma questão de diáspora dos negros no Brasil e nos Estados Unidos, e de uma musicalidade que, rompendo com o mainstream do rock and roll, de bandas da década de setenta, aposta num elemento percussivo rico em influências de jazz, de blues…”

Baile funk no Clube Canto do Rio (RJ), nos anos 80 (Foto: Bruno Veiga/Agência O Globo)

Baile funk no Clube Canto do Rio (RJ), nos anos 80 (Foto: Bruno Veiga/Agência O Globo)

Segundo Luciane, o Baile da Pesada abre espaço para o funk no Brasil, que posteriormente se territorializou nas favelas do Rio de Janeiro e em outras periferias pelo país. Nos subúrbios, o ritmo se relaciona intimamente com os elementos de raça e de etnicidade:

Luciane Silva: “Nós sabemos que a realidade das periferias brasileiras tem um elemento racial, e isso é o que nos leva a pensar na identidade, já cantada "som de preto, de favelado", como em muitas letras, talvez das mais conhecidas como "Rap da Felicidade", "Eu Só Quero Ser Feliz", ou como "Rap de Silva". [...] O funk sofre de um estigma por ser um som de preto favelado, mas [é] um estigma que vai sendo revertido no final do século XX, junto com o hip-hop, na demonstração de que esse é o ritmo popular urbano do Brasil. [...] O funk já está desde a década de setenta no país, e ainda antes, se a gente for pensar. Mas a partir dos anos 2000, a gente tem uma expansão do ritmo nas favelas, através dos bailes, através das equipes, na mídia. Furacão 2000 tem aí um pioneirismo. [...] Essa expansão resulta numa relação muito intensa entre funk, raça e periferia. Hoje, eu acredito que não dá para falar de funk sem pensar o lugar da sua realização mais incômoda. O lugar da sua realização que incomoda o estado é a favela, e é a periferia”.

O trabalho de doutorado de Luciane Silva, finalizado em 2009, resultou no livro "Funk para além da festa: um estudo sobre disputas simbólicas e práticas culturais na cidade do Rio de Janeiro". A tese investiga os bailes como fenômenos culturais e o funk como expressão da juventude preta periférica, discutindo também seus processos de criminalização:

Luciane Silva: “A principal questão da minha tese, que me leva a uma reflexão importante, é a perseguição aos bailes. Algum tempo após o lançamento do livro, eu lembro que, quando o Renan da Penha ganha o Grammy Latino, ele está preso por uma acusação de associação ao tráfico, que é uma acusação extremamente genérica, que pode ser aplicada a boa parte dos moradores. Ele tá ganhando um prêmio, e ele está preso. [...] Essa é a questão: a forma como o termo "funkeiro", a adesão ao ritmo e às festas funk, se torna uma razão para que o Estado justifique o aborte em favelas. [...] Quando você ouve as declarações dos comandantes, eles dizem que o baile funk é o "fracasso civilizatório". Ou seja, a demonstração pra mim é o potencial que esses bailes têm de discursos contra o Estado. O [subgênero de funk] "proibidão" é um tipo de letra que, no Rio de Janeiro, faz um discurso contra a polícia, narrando situação de prisão por policiais, de execução, de tortura. Ou seja, não é um ritmo bem vindo pro Estado.”

Do Baile da Pesada, na década de 70, o funk passou pelas batidas eletrônicas do DJ Marlboro nos anos 80, até se popularizar pelo Furacão 2000. Hoje a diversidade do gênero inclui o Funk Ostentação da Zona Oeste Paulista, o Brega Funk de Recife e diversos outros estilos espalhados pelos estados brasileiros. O funk foi alavancado pelos videoclipes na internet, streamings e redes sociais. E os bailes e as festas continuam como territórios de reconstrução de identidade e bem estar.

Desde os anos 70, os bailes funk difundem o gênero no Brasil e reúnem culturalmente a juventude periférica (Foto: George Braga/Instagram)

Desde os anos 70, os bailes funk difundem o gênero no Brasil e reúnem culturalmente a juventude periférica (Foto: George Braga/Instagram)

Conversamos com Michael Rizzi, poeta cearense, rapper, MC e integrante do Baile de Favela 4town. Produtor cultural da cidade, Rizzi considera que o funk no estado do Ceará tem papel fundamental na construção de uma “cultura da paz”:

Michael Rizzi: “O funk por si só vem com uma forma envolvente, com a batida e até as letras, nessa lógica de fazer com que a gente se divirta e ele cumpre esse papel. O funk é uma música de diversão para gente curtir. Então, ele vem trabalhando na lógica de construção de uma cultura de paz. Seja num baile, num quebra, num bar, em qualquer lugar de uma cidade, quem estiver reunido para ouvir aquele fundo de música, vai estar na lógica de poder se divertir. Então, o funk desempenha esse papel de forma fundamental dentro da nossa cidade. [...] Gosto de destacar que o funk, muitas vezes, aparece como um caminho, uma possibilidade de mudança. Quem canta funk, quem dança funk, quem produz o funk, está enxergando não só uma forma de viver um sonho, dentro da lógica de se tornar profissional dentro dessa área, mas uma lógica de mudança. Mudar a sua própria realidade e a realidade dos seus, de quem está em volta. Muitas vezes, as pessoas que estão envolvidas com funk, estão inseridos em ambientes ou em espaços que são dominados pela violência, e veem no funk a forma e a lógica de se afastar de tudo, vivendo o contrário.”

O MC Rizzi fala ainda do ritmo como ferramenta de conscientização e transformação social, que apresenta em suas letras contextos políticos e denúncias das realidades brasileiras:

Michael Rizzi: “Existem diversos tipos de funk diferentes: o funk consciente, o funk proibidão. Vários funks vão trabalhar na lógica de conscientizar, de educar e de falar sobre questões sociais que envolvem o nosso país, que muitas vezes são escondidas, a grande mídia não revela. Então ele também vem falar sobre aquilo que não é mostrado.”

O Dia Nacional do Funk reconhece o gênero  como expressão cultural e musical das massas. Com raízes na etnicidade, o funk também contribui no debate das desigualdades e hierarquias entre centro e periferia, tensionando fronteiras de território e legitimidade cultural.

Sobre a data comemorativa, que aguarda sanção presidencial, Rizzi comenta, enfatizando o papel de conscientização do projeto de lei e a importância dele contra a criminalização e a perseguição das linguagens e movimentos periféricos:

Michael Rizzi: É prestar homenagem a essas pessoas que utilizam desse gênero como forma de transformar a realidade e o contexto que estão inseridos. [...] Acho que o papel fundamental dessa lei também é conscientizar. Conscientizar não só a população mais pobre, mas também conscientizar a população mais rica. Afinal, quando a gente fala em leis nesse país, é impossível não citar a Lei de Vadiagem. A Lei de Vadiagem que fez com que o samba fosse criminalizado, que fez com que a capoeira fosse criminalizada, que fez com que reunião de pessoas pretas e periféricas fossem vistas como algo errado de se fazer. E o funk também passa exatamente por isso, pela criminalização, daquilo que não é cultura. Cultura que, muitas vezes, foi dito nesse país como aquilo que é branco e europeu. Então, essa lei vem mostrar que o movimento periférico do funk, que o gênero funk, também é uma cultura. Afinal, cultura é tudo aquilo que representa um povo em determinada época, em determinado espaço. O funk tem peso, tem cor e tem sua referência geográfica. É a periferia, é o povo preto. Então, a lei vem na lógica de conscientizar, para fazer com que enxerguem o funk como ele de fato é: como cultura, e não só a cultura branca e europeia”.

No Senado, o projeto de lei que cria o Dia Nacional do Funk reconhece o potencial cultural e também econômico das manifestações culturais da periferia. Elas ressignificam, valorizam e preservam tradições e expressões com linguagem e vestimenta, fortalecendo a autoestima e orgulho suburbano.

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