Guilherme Azevedo
Especial para a Rádio Universitária FM 107,9
Delicadas cruzes de madeira fincadas no chão arenoso contrastam com as imponentes torres de geração de energia eólica, que giram sem parar. Com o barulho do vento ao fundo, uma mulher descalça caminha com dificuldade pelo solo sagrado que guarda os restos mortais de seus antepassados. Visivelmente emocionada, sua voz narra como a tradicional visita ao cemitério da comunidade esteve ameaçada pela chegada abrupta de um parque eólico em sua comunidade.
Filhos do Vento é um documentário dirigido pelos jornalistas Rogério Bié e Euziane Bastos. O longa serviu como Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Jornalismo, na Universidade Federal do Ceará (UFC), e foi orientado pela professora Kamila Bossato. Ele narra a história de luta e resistência da comunidade quilombola do Cumbe, localizada no município de Aracati, contra a ameaça de destruição de seu modo de vida tradicional pela instalação de um parque eólico em seu território. A pré-estréia do filme ocorreu no último dia 11 de abril, no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza. A grandeza do espetáculo era evidente no sorriso dos diretores, bem como no dos moradores do Cumbe que se fizeram presentes para apreciar em primeira mão o resultado do trabalho dos jovens jornalistas.
O título da obra nos dá uma pista da ideia inicial que deveria capitanear o documentário. O filme revela, logo no início, que a expressão “filhos do vento” foi cunhada pela população da comunidade para se referir aos filhos gerados a partir da relação entre moradoras e trabalhadores do empreendimento eólico. O pai, após o fim do serviço no parque, deixava a mãe e a criança ao Deus dará. Essa é outra dimensão do impacto desse tipo de empreendimento abordada pelo documentário: o da exploração sexual das mulheres dessas comunidades. Porém, como é recorrente em temas sensíveis, o impulso inquisidor do jornalista acaba esbarrando na sensibilidade das fontes, e a apuração acaba não tomando o rumo esperado. Esse parece ter sido o caso em Filhos do Vento. Isso de maneira alguma rebaixa o filme, que toma um caminho interessantíssimo. Sem deixar de lado a problemática inicial, os diretores exploram outras facetas do conflito, e trazem uma perspectiva emocionante da relação da territorialidade com a formação das identidades, bem como da forma da luta organizada daquela população.
Se fosse possível resumir toda a rica narrativa construída em uma hora e 15 minutos de filme, chegaríamos, invariavelmente, à velha luta de classes. O relato dos quilombolas pinta o quadro de um processo, desenvolvido ao longo de décadas, de estabelecimento das relações de produção tipicamente capitalistas na região. Conforme conta Cleomar da Rocha — pescadora, marisqueira e presidente da Associação Quilombola do Cumbe — a Cagece (Companhia de Água e Esgoto do Ceará) se instalou na comunidade em meados da década de 1970. Com a chegada da empresa, a água, que antes era acessada livremente pela comunidade, tornou-se mercadoria. “Aí começam os conflitos pela água, que antes era de todo mundo, não faltava. E chega a Cagece, coloca vários poços. Então começa a secar as lagoas”, afirma o historiador e educador popular João Luís Joventino, o João do Cumbe.
O final dos anos 1990 marca a chegada da carcinicultura (criação de camarões em viveiros), na comunidade do Cumbe. É interessante notar que esses negócios estão sempre ligados a interesses externos à população do quilombo, que se vê cercada pela expansão constante dos empreendimentos. A criação de camarões, um negócio altamente rentável, que movimenta diversas cadeias produtivas – como a produção de equipamentos e de ração para os crustáceos –, está atrelada a grandes empreendimentos, cujos capitais se originam em sua maioria no Sul e Sudeste do país. As fazendas de camarão instalam-se nos mangues, e expulsam os pescadores e marisqueiros, além de despejar resíduos químicos e biológicos que causam a morte dos caranguejos, importante fonte de renda para a população local. “Junto com isso, [vem] toda a privatização, todo um cercamento. Isso impactou muito nosso alimento, nossa renda, e principalmente o ecossistema, com tanta degradação causada pela carcinicultura”, conta Cleomar.
Por volta de 2008, chega o parque eólico. Novamente, sem qualquer tipo de consulta ou diálogo com a população local. Não demorou para os moradores sentirem na pele os impactos da construção do empreendimento. O fluxo interminável de caminhões nas precárias estradas, a destruição das dunas e a privatização dos espaços que outrora fizeram parte da vida cotidiana dos moradores da comunidade são apenas algumas das mazelas trazidas pelo negócio dos ventos. Essas questões, muito evidentes no documentário, expõem as contradições no discurso da energia limpa, e ligam um sinal de alerta sobre os esforços dos capitalistas do setor elétrico-renovável para “modernizar a legislação”, para citar a fala da presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica, Elbia Gannoun, no documentário.
O mérito do filme está em mostrar como uma população sitiada pelo avanço do capital encontrou formas de resistência organizada para marcar posição diante da destruição do seu território e do seu modo de vida tradicional. Esses esforços culminaram no reconhecimento coletivo da identidade e do estatuto de povo quilombola, e servem como inspiração para toda a classe trabalhadora.
O que faltou foi apenas dar nomes aos bois. João do Cumbe, parafraseando Mercedes Sosa, chama o empreendimento eólico de “monstro grande que vai devorando tudo”. Ao optar por se afastar de uma investigação aprofundada sobre a natureza econômica da usina, cria-se um monstro kafkiano, de natureza opaca e sinistra, que paira sobre a cabeça dos moradores, mas sobre o qual nada se pode saber. Talvez fosse bom deixar claro quais capitais o sofrimento da população do Cumbe remunera. O parque eólico Bons Ventos, peça central dessa história, foi adquirido em 2012 pela Ersa, subsidiária da CPFL Energia, uma das maiores empresas do setor no Brasil. Em 2017, a companhia passou para as mãos do capital estrangeiro, tendo sido adquirida pela estatal chinesa State Grid Corporation, o maior conglomerado do setor elétrico no mundo, com ativos na casa dos US$ 700 bilhões.
O curso de ação tomado pelos jornalistas é compreensível. Euziane e Rogério preferiram, muito sabiamente, focar suas lentes e seus microfones nos trabalhadores e na sua luta, e produziram um excelente documentário. O filme emocionou a todos, tanto pela luta dos quilombolas, quanto pelo esforço monumental dos dois jornalistas do interior, que não desanimaram frente às dificuldades de empreender uma produção desse quilate. No final da exibição, todos foram recompensados: os jovens jornalistas e o povo do Cumbe, com os aplausos estrondosos que demoraram a cessar, e a plateia, com uma produção de encher os olhos e o coração. Quem teve a sorte de estar presente naquela noite mágica, certamente não a esquecerá tão cedo.