Na década de 1970, nas periferias do Rio de Janeiro, surgiram os bailes da pesada, cujo principal som eram músicas de origem negra e estadunidense. Estas festas construíram a identidade do que eventualmente se tornou o funk carioca. Hoje, este gênero musical tem diversas vertentes, da ostentação ao proibidão, e está presente em boa parte do território brasileiro.
As melodias envolventes e letras acessíveis conquistaram muitos fãs, mas também têm sido alvo de comentários negativos e tentativas de censura. Um exemplo disso são as intimações recebidas pelos MCs Maneirinho e Cabelinho no mês de outubro. A Polícia Civil do Rio de Janeiro investiga os funkeiros por apologia ao crime após notícia-crime aberta pelo Deputado Estadual Rodrigo Amorim, do PSL do Rio de Janeiro. após as intimações, Maneirinho e Cabelinho prestaram depoimento e, no momento, aguardam atualizações do processo.
A Rádio Universitária FM tentou entrar em contato com os MC’s Maneirinho e Cabelinho, mas não teve retorno até o fechamento dessa reportagem. Na rede social Instagram, os funkeiros publicaram textos alertando seus fãs e desabafando sobre as investidas de associar o funk à atividades criminosas. MC Maneirinho alegou que as acusações de apologia são uma “covardia” e reiterou seu caráter e dedicação à sua carreira musical.
De forma similar, MC Cabelinho criticou a ausência do estado em relação aos casos de João Pedro e Ágatha, crianças baleadas por policiais militares no Rio de Janeiro. O artista defendeu sua produção musical, que, segundo ele, é um retrato das comunidades periféricas, e declarou "pode ter certeza que até quando eu puder vou continuar fazendo isso. Prenderam Rennan da Penha, querem me prender, vão querer prender todo favelado que, contrariando a estatística, consegue espaço e reconhecimento da sociedade". MC Cabelinho afirmou ainda que a acusação de apologia ao crime é uma “denúncia política”.
Segundo o advogado Danilo Cymrot, o conceito de apologia ao crime se refere à exaltação de pessoa ou ação criminosa:
"Se uma música faz elogio a uma pessoa que tá envolvida no mundo da criminalidade, mas esse elogio não é decorrente do fato criminoso, mas apesar do fato criminoso, não se configura o crime de apologia. então, se tem uma música que simplesmente menciona a amizade que o MC tem com o traficante, ou o fato do traficante ajudar a comunidade, isso não pode ser configurado como crime de apologia. seria apologia, por exemplo, um discurso em que a prática do crime fosse elogiada".
A interpretação de letras do funk como apologia ao crime não é novidade. Em 2017, o senado brasileiro analisou uma proposta de lei para criminalizar o funk, enviada por Marcelo Alonso, um webdesigner de 47 anos, morador da zona norte de São Paulo. A proposta recebeu mais de 20 mil assinaturas na internet, por isso chegou ao senado. o texto da proposta denominava o gênero como “crime de saúde pública” e “falsa cultura”. O projeto foi arquivado pelo senado nas fases iniciais de análise por ser explicitamente inconstitucional.
Danilo Cymrot, que também é pesquisador de estudos culturais, acredita que censurar o funk não é uma forma válida de tratar as questões sociais versadas nas canções. Ele ressalta que o funk retrata, como alegam os artistas do gênero, a realidade da periferia, que lida com a violência policial, com a guerra ao tráfico e outros problemas. Por isso, Danilo lembra que composições musicais são obras de ficção, apesar de inspiradas na realidade:
"A gente não pode levar ao pé da letra uma letra de uma música, afinal de contas não se deve confundir o autor de uma música com o eu lírico. muitas vezes as pessoas criam personagens e fantasiam, exageram a realidade, para fazer uma obra de arte. Quer dizer, não é todo mundo que canta sobre o tráfico que de fato tem a experiência de vivenciar o mundo do tráfico de drogas, então isso tem também que ser levado em consideração. Então, seja considerando que eles retratam simplesmente a realidade, ou seja considerando que o que eles fazem é uma obra de ficção, nós não devemos considerar essas letras como necessariamente apologia ao crime."
Essa associação do funk com práticas criminosas ocorre por conta da rejeição às culturas das juventudes e da população negra. É o que afirma Camila Holanda, professora da Universidade Estadual do Ceará, e coordenadora do Travessias, grupo de estudos e pesquisas sobre trajetórias juvenis, afetividades e direitos humanos. Para Camila, a narrativa presente no funk é confundida como apologia ao crime porque as culturas jovem e negra não são reconhecidas como válidas e autênticas.
"Perseguição pública e política com relação ao funk é racismo. Não tem outra explicação. tanto é que os jovens que estão encarcerados são os jovens negros. As festas das elites, mesmo no Rio de Janeiro, no qual o funk é o grande som, têm um tipo de controle e regulação muito diferente do que acontece nas favelas. Eu considero o funk como uma linguagem heterogênea da juventude que fala sobre as suas complexidades e de uma narrativa que precisa ser ouvida e não criminalizada. E quando eles estão produzindo arte e cultura, eles são duplamente condenados, porque a eles não cabe a criatividade, a eles cabe a precariedade."
Segundo Camila, outros movimentos passaram por esse processo, como o samba e o jazz, que só foram aceitos socialmente quando cantores brancos levaram estes gêneros a espaços da elite brasileira. Ela acredita na necessidade da abertura de mais espaços culturais e artísticos nas cidades para a população negra, jovem e periférica como uma das formas de combater a não aceitação ao funk.
Reportagem de Mateus Brisa com orientação de Carolina Areal