23/06/20

Transcrição Vamos Mostrar Cultura #4 – Elisabete Pacheco

Carolina Areal: Elisabete, eu vou começar esse nosso bate-papo na verdade já contando uma história, aproveitando que é o tema dessa nossa conversa. Estava eu, no Cariri, ali num distrito do Crato, não vou lembrar agora onde. Em 2014, eu estava trabalhando com um evento de cultura bem conhecido lá no Cariri, aí no Cariri, de onde você está falando.

Elisabete Pacheco: Sim.

Carolina Areal: E um fotógrafo muito querido que estava trabalhando comigo, o Jr. Panela, me falou de uma amiga que ia se apresentar naquele festival, se eu não me engano com o espetáculo “Tampinha em um mundo de histórias”.

Elisabete Pacheco: Isso.

Carolina Areal: Passados 6 anos, olha com quem eu estou conversando, com Elisabete Pacheco [risada da Elisabete], a amiga de Jr. Panela que me foi apresentada lá no Cariri. Elisabete, acho que essa história você não se lembra...

Elisabete Pacheco: Lembro sim, lembro sim, mas nem tinha associado. Você está bem diferente

Carolina Areal: Não é? O tempo faz milagres, Elisabete, milagres... [risada da Elisabete e Carol].

Elisabete Pacheco: Lembro demais.

Carolina Areal: É engraçado né como a gente vai colhendo essas histórias e a memória da gente é algo que ajuda muito nesse processo. Quando eu vi você, assim durante as pesquisas, e a Beatriz, que participou da produção dessa entrevista, me falou de você, me veio essa lembrança lá do Cariri em 2014. E Elisabete, esse nosso bate-papo, pra gente conversar um pouco sobre contação de histórias, é algo interessante porque até onde eu sei a contação de histórias existe desde que o mundo é mundo. O homem sempre vai passando, ia passando os acontecimentos através da oralidade. Mas você acha que, por exemplo, o universo da contação de histórias ainda é pouco explorado pelas pessoas, as pessoas poderiam olhar com mais atenção para contação de histórias?

Elisabete Pacheco: Olha, dentro da arte, a narrativa oral adota a contação de histórias que está aí há milhões de ano, desde que o mundo se entende por mundo, e que a gente senta pra contar as histórias. Ela ainda não é nem entendida como linguagem pelos editais, pela políticas públicas, mas nós que somos narradores, que estamos nesse meio, nós nos entendemos como linguagem e cada linguagem tem suas especificidades necessárias, né?! E a contação de histórias não é diferente, ela é um mercado que cresce constantemente, é uma arte que se expande, mais e mais narradores estão, pessoas, aliás, enveredam por esse mundo narrativo, e essa narrativa está ganhando corpo. E nesse momento de pandemia, esse momento desse isolamento social foi uma das linguagens que mais teve acesso nos últimos tempos. Você abre, você clica em qualquer espaço no facebook, no instagram, em qualquer uma dessas ferramentas, e a gente vê narradores do mundo inteiro contando histórias nas lives. A gente mesmo aqui no Cariri, nós mesmos estamos segunda, quarta e sexta com ensaio aberto, onde convidamos narradores do Brasil inteiro para estar conosco nesse momento.

Carolina Areal: Isso foi até uma curiosidade que surgiu durante a pesquisa, porque, de fato, eu tenho percebido uma maior utilização das redes sociais, nesse processo de pandemia, pelos contadores de histórias, seja pelo Instagram, pelo Youtube, pelo próprio Facebook…E eu lembro muito desses processos de contação de história muito do presencial, de o contador, a contadora de histórias estar na linha de frente, ter aquela interação bem direta com o público e eu fiquei curiosa pra saber de você se a magia consegue acontecer mesmo no virtual? Como é que tem sido essa maior experiência de vocês no mundo virtual?

Elisabete Pacheco: Olha, vou te contar duas experiências que eu tive esses dias. A gente fez uma homenagem pro dia das mães nessa semana, colocamos o nome dessa  programação “Flores do cotidiano” e aí, durante a narrativa, depois tivemos uns feedbacks, tanto lá no momento da narrativa como no posterior. Uma que eu gostei muito foi uma mãe de uma narradora que disse assim: “Olha, essa pessoa contando história, eu consigo desenhar tudo que ela tá me contando, então eu fico olho a olho com ela”. O que tá é minha voz, o que é primordial na narrativa, o olhar é extremamente importante, todos nós também ficamos nos questionando, como é que eu vou contar a história? Se a história, ela aproxima tanto. E cadê o meu olhar?  Que vai dar esse termômetro de como tá a minha narrativa, como tá a reação do meu público. Eu agora não tenho esse olhar, esse olhar nesse momento me falta. Quando eu tô nas redes sociais, né, eu tenho alguns comentários que as pessoas estão postando no momento. E aí depois eu puxo uma outra fala de um pesquisador chamado Francisco Assis Sousa Lima que alguns anos atrás fez uma pesquisa por incrível que pareça aqui no Cariri, por coincidência do destino e ele escreveu durante essa pesquisa, no primeiro capítulo dele, algo que me chamou a atenção, que foi o seguinte: “É evidente que a fidelidade de uma memória só se sustenta na medida mesmo do seu requisito prático. E sobretudo que essa prática só tem sentido e só se torna viável em relação imediata e direta com a existência de um público real”. Nosso público não deixou de existir, o que nós estamos utilizando nesse momento é uma outra ferramenta para alcançá-lo. Se no momento nos falta o olhar direto e esse contato empático de proximidade física, a nossa voz, através desse meio que é novo pra muitos, ela nos faz encontrar esse público. Então, esse nosso público é real, tanto que a nossa live, esse ensaio aberto, o público é crescente. Pessoas também que já sabem esses dias e esses horários estão ali pra assistir as narrativas e a maioria deles não são narradores, são escutadores de história.

Carolina Areal: Que legal, Elisabete. Eu confesso que eu nunca tinha parado pra pensar sobre, nessa perspectiva, de que a história permanece, o público permanece, o que muda de fato são só as ferramentas. E aí, isso puxa um pouco pra uma outra questão que eu tinha aqui, é se essas ferramentas, como o celular, computador, o próprio videogame que é outra tecnologia aí muito presente na vida das crianças, por exemplo, elas (as ferramentas) podem ser aliadas dessa contação de história?

Elisabete Pacheco: Elas podem e elas devem ser, né, até porque a linguagem, a narrativa, essa arte de contar história ela se modifica também com o tempo, então qual o público que eu alcanço, em que época eu alcanço. Se há um tempo atrás cabia no momento de uma lida de trabalho as pessoas sentarem e contarem história, como é esse momento agora na atualidade? Onde as pessoas, até uns dias atrás nesse mundo antigo que tínhamos, corriam pra lá e pra cá nas suas obrigações, no seus afazeres de trabalho, de estudo, uma vida totalmente atarefada e nesse momento que nós estamos, a grande maioria parados, como é que dá conta de chegar nesse público? Como é que eu alcanço um público que tem um acesso a muitas mídias e que talvez a contação de história não seja tão interessante? O que a gente precisa ter, é a delicadeza de perceber as diferenças e o tempo que nos encontramos. Não dá pra gente reclamar que a gente não consegue alcançar um determinado público, o que a gente precisa mudar são as estratégias pra que esse público seja contemplado. Porque todas estão aí, ferramentas estão disponíveis, basta ter esse olhar, esse olhar que o próprio narrador tem de poder conseguir perceber a nuance que existe em cada momento e pra cada público. Vou contar outra experiência, há dois atrás, eu entrei numa turma de ensino médio…

Carolina Areal: Uhum.

Elisabete Pacheco: A primeira coisa que eu pensei: “ninguém vai querer participar dessa aula porque era a aula que tratava das narrativas orais do Cariri”.

Carolina Areal: Certo.

Elisabete Pacheco:  Me surpreendi completamente! Foi uma turma que deu muita gente, em que os meninos e as meninas estavam lá sempre pra ouvir e aprender a contar história. É um público bem específico e exigente, os adolescentes são, mas é um público totalmente sensível também a essas narrativas. O que basta a nós narradores é ver quais são, perceber qual é a ferramenta que eu utilizo, como é que eu chego até ele. Pra que as histórias cheguem até as pessoas, elas utilizam de diversos instrumentos, mas nunca esquecendo o principal, a voz do narrador.

Carolina Areal: Que legal, Elisabete. É engraçado que a gente tá conversando aqui, pra quem tá escutando esse podcast, eu não consigo ver a Elisabete, nem a Elisabete me vê, isso pra gente poder garantir aqui uma qualidade de áudio legal, mas eu já tô hipnotizada, Elisabete, não vou mentir, é como se você estivesse contando várias histórias pra mim, eu sigo aqui hipnotizada em você.

Elisabete Pacheco: Ai que massa.

Carolina Areal: E tem uma relação muito legal com o Cariri, assim, dessas minhas idas ao Cariri por questões de trabalho, eu acabei me apaixonando também pela região... e pesquisando sobre você, Elisabete, eu vi que você iniciou na contação de história muito também influenciada por toda essa tradição, por toda a cultura que envolve essa região do Cariri. E você iniciou sua trajetória em 2007 e tem um vasto currículo na formação de novos contadores de história, né, você é da escola de narradores do Cariri e você realiza também a Mostra Nacional de contadores de história nas terras do Cariri, né isso?

Elisabete Pacheco: Isso mesmo.

Carolina Areal: E eu fiquei pensando como é que é a realidade dessa contação de história aí no Cariri? Mas também como você vê a realidade da contação de história no nosso estado como um todo, já que você também acaba circulando por várias cidades?

Elisabete Pacheco: Isso. Bom, vou falar primeiro da rede de contadores de histórias do Ceará, como eu te falei no início, nós nos entendemos como linguagem, então nós nos organizamos, temos um cadastro com vários narradores que fazem parte dele e sempre estamos pensando nas nossas ações, o que nós vamos fazer durante esse ano, o que é que precisamos reivindicar junto ao poder público, quais são os espaços que nós temos, onde é que nós estamos contemplados nos editais. Então, essa é uma inquietação nossa e buscamos sempre nos ver, nos reunir, estar juntos para buscar soluções e pra demarcar nossos lugares de fala nesses espaços culturais. A Mostra Nacional de Contadores de História, surgiu do desejo de que pudéssemos aqui no Cariri participar de eventos como esse, que até então nos foi negada. Os espaços são muito curtinhos, quando a gente tem a narrativa é no pior espaço, é num local que não tem o equipamento ideal pra gente contar história. Imagine você numa praça, um espaço extremamente grande e aberto e que você não tem um microfone, porque você é um contador de história e, muitas vezes, a contação de história é tida como algo menor, só que não é. Não é assim que eu percebo…

Carolina Areal: Sim.

Elisabete Pacheco: E não é assim que nós que estamos dentro da rede de contadores de história percebemos. Esse nosso espaço é um espaço político, então se ele é um espaço político, a gente tá ali pra nos colocar e dizer “olha, a narrativa ela é importante, ela é importante não só porque ela promove, talvez, um incentivo a leitura, mas porque ela consegue criar laços afetivos entre as pessoas, entre o público e o narrador, entre narrador e narradores [risadinha da Carol] e fazer com que essa rede possa se fortalecer e circular por diversos espaços. Então hoje os narradores aqui do Cariri, eles não ficam só no Cariri, eles alcançam outros vôos, eles vão pra festivais, eles participam da programação da capital, em outras cidades do interior. Ele vai pra festival em outro estado como São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, eles vão mais além, eles cruzam essas barreiras e vão pra encontros internacionais e o que é a importância desse narrador estar ocupando esses espaços, e aí eu chego onde eu vou falar da escola de narradores. Por muito tempo, nós que somos narradores aprendemos fazendo, aprendemos a contar história contando. Assim como narrador de tradição, que tínhamos alguns anos atrás, aquele senhor ou aquela senhora que no meio da sua labuta pra distrair, pra se encontrar, ele sentava e contava história. A gente tem relatos de pessoas que andavam léguas e ele era intitulado contador de história somente por contar histórias em determinados lugares e aí, com o advento de tecnologias, como por exemplo a TV, vai tirando um pouco isso do narrador, e agora em momentos, nesse novo momento, não agora que eu falo, que a gente tá nesse momento da pandemia, mas anterior a isso, a narrativa começou a se fortalecer, e aí se precisava, precisamos de local de formação que tenha um trabalho formativo mais consistente, que tem uma teoria em base toda essa prática que nós temos, porque não se nasce um narrador, se trabalha para se tornar um narrador de história. Então a escola, ela surge com essa preocupação, que a gente possa realmente formar, ter uma base prática e uma base teórica muito consistente, e aí quando juntamos essa teoria e essa prática lá na escola de narradores em si, que acontece e temos duas turmas, uma em Fortaleza e outra aqui no Cariri, no Cariri chegou agora recentemente, no ano passado, formamos a primeira turma esse ano, e a gente percebe o quanto esses meninos e essas meninas cresceram com a escola, alguns já trabalhavam, já contavam história, outros não, isso é muito visível, é muito perceptível o crescimento profissional deles com a escola, né. Uma equipe muito preparada de narradores que já tem uma trajetória aqui no estado do Ceará e que fazem parte desse corpo docente da escola. E pra mim, ao meu ver, a Mostra Nacional de Contadores de História é um espaço de fruição, onde a gente leva pra 5/ 6 cidades narrativas onde ela muitas vezes não chega, que a nossa preferência é que as narrativas pra periferia, pra Zona Rural, né?!

Carolina Areal: Uhum, certo.

Elisabete Pacheco: Só que o foco principal dela, o espaço principal dela é a comunidade do Gesso, no Crato, onde todas as noites a gente tem narrativas, durante 5 dias no mês de setembro que é a época que normalmente acontece a Mostra Nacional de Contadores de História. Então esses meninos que se formam, eles também vão tá nessa Mostra, eles também vão contribuir, porque a Mostra é, algo que eu preciso colocar, que ela só consegue acontecer pela iniciativa desses narradores, porque a Mostra não tem um orçamento. A gente consegue visitar cidades, a cada ano aumenta a quantidade de cidades e o público atingido é maior, como também conformações e contém conversas, palestras, né. E esse universo também é muito presente nas escolas e muitas vezes o professor se torna um contador de história dentro da sua sala de aula, mas no entanto não lhe é dada essas ferramentas, e também nesse mundo a gente trabalha com esses professores, tanto durante o ano com outras ações que vamos realizando enquanto narradores aqui do Cariri, né, enquanto escola de narradores e enquanto território da palavra que é um núcleo voltado a contação de história que também tá situado na comunidade do Gesso, dentro do coletivo camaradas.

Carolina Areal: Elisabete, essa sua fala me fez pensar em duas coisas. A primeira é sobre essa questão da profissionalização do contador de histórias, porque em 2017 teve uma deputada, se eu não me engano, Erika Kokay, que era do PT do Distrito Federal, ela criou um projeto de lei à época pra regulamentação da profissão do contador de histórias, né?

Elisabete Pacheco: Isso.

Carolina Areal: E eu fui pesquisar um pouco sobre esse projeto de lei e eu vi que ele foi arquivado, pelo menos a atualização que eu encontrei é que ele foi arquivado em janeiro de 2019, vocês têm acompanhado também essa questão de uma regulamentação da profissão? Qual o impacto de um projeto de lei como esse, que visa regulamentar a profissão de vocês, ser arquivado? Qual é o peso que vocês sentem disso no dia a dia de vocês? Como você falou um pouco sobre essa questão da busca por políticas públicas, né, o quanto é difícil os espaços pra contação de história, pra que as pessoas reconheçam seu valor? Qual o impacto, por exemplo, de você ter um projeto de lei como esse arquivado?

Elisabete Pacheco: Olha, durante o ano, o ano que foi proposto, houve muito posicionamento dos narradores e muita conversa, muitos a favores e muitas pessoas que questionaram, não contra, que questionava o texto. O texto deixava de contemplar, por exemplo, os mestres da cultura, não é que os mestres da cultura, eles queiram ocupar o espaço dos narradores urbanos, mas eles também precisam ter essa legitimação, a gente não pode deixar de lado e não ter esse entendimento que o mestre da cultura, que narra, é um contador também. A profissão, pasme, existem lugares que já fizeram até concurso pra contador de história.

Carolina Areal: Que legal.

Elisabete Pacheco: Nós temos uma amiga em Iguatu, quando nem se falava em um projeto de lei pra regulamentar a profissão, a carteira de trabalho dela é assinada como contadora de história. Até hoje ela atua na área, desenvolve um trabalho belíssimo, que é a Carlê Rodrigues, dentro da cidade de Iguatu em várias escolas e na biblioteca, né?! O que precisa diplomar e ser revisto é o que tá escrito na lei... tinha outra coisa também, ele limitava, via o narrador, o local de atuação do narrador sendo limitado e o local que essa narrativa chega é muito amplo. Ele chega nos hospitais, ele chega na penitenciária, ele chega nos berçários para os bebês, ele chega na barriga da mãe pro bebê ouvir a história, ele chega e vai pra escola, pra periferia. E tinha uma coisa na escrita do projeto de lei que era bem limitada, então isso foi questionado por diversas pessoas do Brasil, né. É importante você ter essa lei, você ter política? É, mas a gente também precisa ter o cuidado que essa escrita possa contemplar a todos, e não deixar uma grande maioria fora, né?!

Carolina Areal: Sim.

Elisabete Pacheco: A gente pode pensar num grupinho, num grupo menor pra poder deliberar pra um grupo que é tão imenso como o Brasil. Então não é um grupo de determinado estado que vai dizer “é assim, assim e assado”.

Carolina Areal: Eu entendo.

Elisabete Pacheco: Mas é uma conversa de todos os narradores do Brasil que podem chegar a um texto que seja contemplado todo mundo, desde os mestres que são narradores, e que não vão querer ocupar nossos espaços e nem vão querer uma formação, nem uma carteira que o diga narrador, ele já foi legitimado, mas isso precisa tá claro na lei, né?! Senão a gente vai dar um tiro no pé, a gente vai dar um espaço de atuação, a gente vai dizer quem é narrador e quem não é narrador, que é uma discussão que precisa ser ampla, e é uma discussão necessária que seja com todos, com a grande maioria dos narradores por região, que cada um vai ter sua singularidade, é diferente contar história no Cariri do que contar história no sul do Brasil. Então precisa ser levado em consideração. Houve uma ampla discussão em torno da lei, foram colocadas diversas impressões e ressaltadas outras tantas que eram necessárias, mas é isso, nós vamos caminhando cada dia mais, nós já nos consideramos uma profissão, hoje o olhar das pessoas pra isso também já mudou muito... “ah você faz o quê?”, “ah eu conto história”... como se contar história fosse algo que “ah tá, baixou um espírito e agora você conta história”, não, tem todo um preparo, tem todo um trabalho em cima do texto, tem um compromisso ético com o texto, tem um compromisso com o público, tem tudo isso que é levado em consideração. A gente não pega o texto e lê hoje pela manhã e a tarde a gente vai contar, não, de forma alguma. Isso me lembra alguns anos atrás que a gente tava em uma formação no Boca do Céu, o maior encontro de narradores que tem no Brasil, que acontece a cada dois anos em São Paulo, e uma pessoa da platéia perguntou pra uma narradora, “quanto tempo você trabalhou esse texto, até você perceber que estava pronto e vir compartilhar aqui conosco?”, “eu trabalhei 5 anos”...

Carolina Areal: Caramba, muito tempo.

Elisabete Pacheco: Agora imagina, é muito tempo, você trabalha 5 anos num texto, aí alguém vem e aprende uma história hoje e quer contar, não dá conta, tem muito trabalho envolvido até que a narrativa, a gente perceba, que ela está pronta para ser entregue, e mesmo assim sabendo que essa narrativa que tá sendo entregue, ela tá em processo, ela tá constantemente em processo.

Carolina Areal: Exatamente essa é minha outra pergunta, Elisabete, acho que você já deu sinais, você já entrou nessa questão que é uma dúvida/curiosidade/interesse de quem pode ser fato um contador de histórias. Porque ao mesmo tempo em que eu vejo muitos contadores de histórias que já tem aí anos de profissão, desenvolvendo trabalhos durante esse processo mais virtual, enfim, eu também vejo muita gente começando, tô aqui, vou começar a contar histórias nesse momento. Então como é que vocês lidam com isso, né? Eu vi até uma entrevista sua, tá lá no Youtube, acho que foi do evento mais recente agora no fim de maio que você falou sobre legitimação, alguém chegou pra você e lhe legitimou enquanto contadora de história. Então eu queria entender um pouco de fato, pode todo mundo, todo mundo pode, como é esse processo de ser um contador de histórias?

Elisabete Pacheco: Nós sempre temos nossos desejos, uns tem desejo de viajar, outros tem desejo de alcançar alguma carreira ou uma promoção e algumas pessoas tem desejo de contar história, não é verdade?

Carolina Areal: Exato.

Elisabete Pacheco: O que acontece quando eu tenho um desejo? Eu busco me instrumentalizar, busco ferramentas, eu busco teorias que vão facilitar com que esse texto possa ser contado, pra que eu possa me tornar um contador de história, né? Até eu me tornar um contador de história, e aí falo da questão da legitimação, muitas vezes as pessoas ainda não se percebem contadoras de história, aí alguém vem e legitima, aí você é um contador de história, isso aconteceu comigo e aconteceu com tantos outros, até porque são épocas diferentes. Quando eu comecei a contar histórias já tinha uma galera que contava história, cresci ouvindo as pessoas contarem história e até que um dia eu fui parar numa sala de aula, porque eu sempre quis ser professora e contava história, mas nunca tinha contado história em um centro cultural, em uma instituição que promova a cultura, até que alguém disse “você tem jeito pra contar história”, aí eu fui trabalhar em cima disso, buscar as informações. Porque também não é dizer “ah não porque alguém me legitimou e, porque me legitimou, eu agora vou narrar”, não, tem esse campo ético, com o texto, com você, com o público, tem essa questão empática que existe, entre o encontro com o texto e o encontro com você, o que é que eu quero, que eu preciso passar pro público, então, o que eu percebo de tudo isso, com essa formação e quem pode ser contador de história: contador de história, podemos ser no dia a dia, nós contamos história de uma coisa que aconteceu no filme, de um acidente que aconteceu na porta de casa, alguma eventualidade que aconteceu no transporte, na rua, no trabalho, contamos. Agora, no profissional que conta, demanda tempo, investimento e estudar como todas as profissões que a gente tem no mundo, a gente estuda e se dedica pra ela, com o texto narrativo não é diferente. A história pode ser de autor e eu vou me debruçar sobre esse texto, a história pode ter sido contada de pouco em pouco, como a gente fala, por uma outra pessoa, que não tá escrito em lugar nenhum, no entanto ela contou essa história pra gente, e quando ela contou essa história a gente precisa trabalhar em cima desse texto, e aí vai ter diversas maneiras de você enquanto narrador, você vai encontrando, ou enquanto você busca uma informação, as pessoas vão lhe dando um norteamento certo para que você possa chegar a esse resultado. Todos podemos contar, desde que a gente tenha esse desejo de contar e, principalmente, o compromisso com o seu público e com aquilo que você apresenta. Tendo isso, aí é trabalhar, trabalhar, trabalhar e trabalhar [risada da Carol] em cima do texto. Não é outra coisa, é trabalho, até você chegar no ponto que o texto tá bacana pra ser contado, tem uma grande quantidade de dias e de dedicação em cima daquele texto pra que ele possa chegar ao público.

Carolina Areal: Elisabete, eu te agradeço demais por toda essa conversa, acho que deu pra gente entender ainda mais o universo da contação de histórias, que é isso, né, às vezes a gente não tem nem a dimensão da seriedade e do trabalho árduo que vocês têm pra montar todo um espetáculo, toda uma contação de histórias. Eu, assim, agradeço demais por todo esse bate-papo e eu espero sim que vocês continuem trabalhando mais e mais e mais, e levando mais e mais histórias pra gente, viu. Muito obrigada!

Elisabete Pacheco: Carol, eu que agradeço e que bacana que as histórias se cruzam, como a minha história cruzou com a sua durante a nossa existência nesse plano terreno aqui e que é isso, as histórias estão aí para que assim como os heróis, assim como os personagens das histórias, a gente possa percorrer os caminhos. E dentro desse caminho narrativo que percorremos, ou dentro da história, ou na vida real, a gente percebe que sempre nos encontramos com conflitos e esses conflitos sempre tem soluções. Muita luz dos contos que a gente conta como também da vida real. Muito grata pela escuta, muito grata pela partilha e pela oportunidade! E que as histórias possam povoar e cultivar o mundo todo.

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