Países asiáticos apostaram na vigilância digital para reduzir os efeitos da pandemia do novo coronavírus. A China, por exemplo, usou um sistema formado por 200 milhões de câmeras que possuíam reconhecimento facial e desenvolveu um aplicativo que atribui um código de cores aos usuários, que restringe a circulação dos cidadãos dependendo do nível de contágio.
Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, centro de pesquisa em direito e tecnologia, explica que os dados utilizados são de geolocalização e que servem, entre várias outras coisas, para apontar locais de aglomeração entre as pessoas infectadas:
"Os dados de geolocalização podem ser úteis em dois sentidos: um é a utilização de dados de geolocalização para verificar se há aglomerações pela cidade, dadas as medidas de distanciamento social que são importantes para controlar a disseminação do vírus. Em segundo lugar, existe o uso dos dados de geolocalização pra fazer o rastreamento de contato de pessoas infectadas."
No Brasil, o uso da tecnologia no combate à Covid-19 começou no mês de abril, com o objetivo de checar locais de aglomerações e o percurso de pessoas infectadas. Operadoras de telefonia celular como Algar Telecom, Oi, Claro, Vivo e Tim estão oferecendo ao governo dados de mobilidade. Os dados são encaminhados para o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Francisco Brito afirma que precisamos estar atentos para garantir a segurança da população quanto ao uso desses dados pessoais:
"O uso de dados pode realmente ajudar no combate ao novo coronavírus. O que eu penso é que sem uma lei que garanta os limites desses dados, as regras aplicáveis, esse uso é de alto risco. E havendo risco é necessário que na utilização desses dados pessoais, a gente se cerque de preocupações para mitigação desses riscos e, para isso, seria interessante olhar para boas práticas, olhar para adequação a uma lei de proteção de dados pessoais que, embora a gente não tenha ela em vigor hoje, a gente tem ela aprovada."
A lei citada por Francisco é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada em fevereiro de 2018 e que vai entrar em vigor em agosto deste ano. A norma poderia servir como apoio em um momento como este, mas mesmo com essa iniciativa, algumas dúvidas quanto à privacidade e proteção dos dados da população surgem no debate público. O advogado e professor de Direito Penal na Universidade Federal do Ceará (UFC) Daniel Maia dá mais detalhes sobre essa lei:
"A Lei Geral de Proteção de Dados constitui um diploma legal para proteção e regulação dos dados tanto da internet quanto da regulamentação das empresas de telefonia. Ela serve para que possamos ter um marco regulatório de como esses dados podem ser acessados, protegidos e compartilhados."
A aplicação da LGPD pode ser adiada para janeiro de 2021, gerando dúvidas sobre o uso de dados pessoais pelo governo após a pandemia. Saber quais dos seus dados o governo tem acesso, quais estão sendo utilizados e para quais finalidades, é uma medida para evitar o uso desnecessário e ilegal desses dados. É o que garante Francisco Brito Cruz:
"Em primeiro lugar é importante pensar 'por que proteger desses acessos?', 'por que a privacidade é importante?'. A privacidade é importante porque informações sobre as pessoas correspondem a um poder sobre as pessoas. E como nos proteger desses acessos? O quanto antes fazendo valer uma legislação de proteção de dados pessoais ou, na medida do possível, trazendo a discussão sobre boas práticas paras essas iniciativas, até porque nessas iniciativas que estão acontecendo agora não quer dizer que a gente não tenha nenhuma regra de proteção de dados pessoais, o que a gente tem são regras setoriais, que é a situação do Brasil hoje. Mas é assim que a gente tem que se proteger: trazendo a regulação, trazendo a conversa sobre boas práticas, revelando quais são as práticas que os governos e o setor privado estão adotando, colocando isso em debate público."
Caso alguém sinta que suas informações continuam sendo usadas enquanto a LGPD não entra em vigor, o advogado e professor da UFC Daniel Maia explica o que se pode fazer:
"No caso, agora, a pandemia justifica que os dados sejam usados. Não quer dizer que depois que a pandemia passar, que a pandemia for controlada esses dados vão poder ser acessados da mesma forma. E se isso continuar acontecendo, as pessoas que se sentirem lesadas pela utilização de seus dados de uma maneira excessiva pelas empresas ou pelo governo podem procurar o judiciário."
Em abril, o presidente Jair Bolsonaro orientou que o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações interrompesse o acordo com as operadoras de telefonia móvel sob a justificativa de riscos à privacidade. Em resposta a esse pedido, o ministro Marcos Pontes usou suas redes sociais, no dia 12 de abril, para defender a parceria com o setor.
O ministro se pronunciou dizendo: “tivemos a oferta de operadoras para o uso de gráficos de calor compilados de dados celulares anônimos e coletivos para avaliação de isolamento e previsão de propagação da epidemia, conforme já tem sido feito por outros países democráticos em outros continentes".
Reportagem de Mariana Bueno com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira