03/09/19

Entrevista com Breiller Pires sobre homofobia no futebol

Breiller Pires é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e possui diversas matérias que relacionam questões sociais e políticas com o esporte (Foto: Arquivo Pessoal)

No dia 25 de agosto de 2019, o árbitro Anderson Daronco paralisou a partida entre Vasco e São Paulo, válida pela 16ª rodada do Campeonato Brasileiro, após gritos homofóbicos proferidos pela torcida vascaína no estádio de São Januário. A atitude do juiz representa um conjunto de medidas adotadas pelas entidades reguladoras do futebol, como a FIFA e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), para evitar a homofobia no âmbito futebolístico.

Além da paralisação das partidas, punições como a perda de pontos e suspensão de atletas podem ser aplicadas para quem tiver atitudes consideradas homofóbicas. É importante ressaltar que essas ações são fruto da criminalização da homofobia, aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 13 de junho de 2019.

Em entrevista à Rádio Universitária FM, o jornalista do El País Brasil e da ESPN, Breiller Pires comenta sobre as medidas aplicadas pelas instituições, as ações dos clubes brasileiros e como o tema é debatido pela imprensa esportiva. Confira como foi a conversa:

Rádio Universitária FM - Nos últimos tempos, entidades relacionadas ao futebol, como a CBF e a própria FIFA, divulgaram uma série de medidas para evitar situações de homofobia dentro do futebol como, por exemplo, a perda de três pontos, multa e até a questão da suspensão de atletas. De uma forma geral, como você enxerga essas punições?

Breiller Pires - Eu acho que é um movimento necessário. É preciso haver punição esportiva para alcançar uma sensibilização de torcedores. Porque se a gente imaginar, fazendo uma retrospectiva, era muito comum arremessar objetos no gramado, na torcida adversária. Mas a partir do momento em que os torcedores se conscientizaram de que arremessar objetos poderia ocasionar em punição esportiva para o clube, começaram a mudar de comportamento. Então, hoje já é mais raro. Da mesma forma, o racismo era algo também muito normalizado nos estádios. Era muito comum ver torcedores chamando jogadores de macaco. Entre os próprios jogadores em campo, essa era uma ofensa bastante banalizada. Mas hoje, com a previsão de punição esportiva, principalmente depois do caso do Aranha, do Grêmio, que resultou na primeira exclusão de um clube de competição por causa de injúrias raciais cometidas por torcedores, já há também uma conscientização maior, embora vários casos continuem acontecendo. Então, no caso da homofobia, eu vejo como algo positivo, a previsão de punição ao clube e, principalmente, acho que é resultado e reflexo da luta de vários movimentos LGBT por igualdade, por exigir que essas ofensas não sejam tão normalizadas no meio do futebol, que é um meio bastante machista. Então para a gente, infelizmente, alcançar uma conscientização de massas, é preciso começar pela punição esportiva e que isso se desencadeie também para uma consciência humana de perceber que esse tipo de ofensa já não cabe mais na nossa sociedade.

RUFM – Você acredita que essas sanções podem trazer quais resultados ao longo do tempo?

Breiller Pires – Acho que a gente viu um marco no fim de semana, quando o Daronco parou um jogo de futebol para alertar o Vasco de que a torcida havia proferido cânticos homofóbicos. Isso nunca havia acontecido. E mesmo com orientação da FIFA e da CBF para os árbitros pararem o jogo, ele poderia muito bem ter ignorado ali no calor da partida e mandado seguir. Mas não se omitiu, cumpriu a orientação. Acho que a partir daí, a gente já tem um movimento dos clubes para fazer campanhas com torcedores, vários clubes já se manifestaram tentando sensibilizar os torcedores da necessidade de não proferir mais esses cânticos. A CBF, por muito tempo, foi omissa. A Seleção Brasileira foi multada várias vezes por causas de cânticos no tiro de meta dos goleiros em jogos do Brasil. E [a CBF] não fazia nada a respeito. Simplesmente era multada, pagava as multas e ficava por isso mesmo. Então a partir da previsão da punição esportiva, da perda de pontos, da perda de mando de campo, acho que a gente consegue caminhar para uma mobilização efetiva dos clubes. Porque é preciso que as instituições se mobilizem também. Essa não pode ser uma luta solitária, uma luta que tenha um mártir. Um jogador que se revele homossexual, por exemplo, levante a bandeira ou uma torcida como já aconteceu antes, na época da Ditadura Militar, com a Coligay, do Grêmio, que foi a primeira torcida gay do Brasil. Mas hoje, a gente não pode esperar isso porque há um ambiente de muita violência e criminalização de pessoas LGBT no Brasil como um todo, não só no futebol. Então é necessário que as instituições que mobilizam paixões estejam atentas, estejam sempre fazendo campanhas e acho que esse é um efeito positivo da previsão de punição esportiva.

Atletas do Vasco da Gama entraram com faixa contra a homofobia no último domingo, após a manifestação preconceituosa de sua torcida na partida contra o São Paulo, em 25 de agosto de 2019 (Foto: Carlos Gregório Jr./Vasco da Gama)

Atletas do Vasco da Gama entraram com faixa contra a homofobia no último domingo, após a manifestação preconceituosa de sua torcida na partida contra o São Paulo, em 25 de agosto de 2019 (Foto: Carlos Gregório Jr./Vasco da Gama)

RUFM – Breiller, você até falou da questão das campanhas nas redes sociais, que os clubes vêm fazendo. Inclusive, no âmbito local, o Fortaleza Esporte Clube lançou uma campanha a respeito dessa situação. Como é que você está analisando essas campanhas? E você vê algum problema na forma como essas campanhas estão sendo feitas?

Breiller Pires – Infelizmente, esse tipo de campanha só surge porque há a previsão de perda de pontos. Isso aconteceu em 2014 com o Corinthians, que lançou um manifesto para a torcida parar de proferir o grito de “bicha” no tiro de meta de goleiros. É uma coisa muito perversa nos estádios. Os torcedores cantam, às vezes, pelo efeito de manada, de verem os outros torcedores cantando e não param para pensar como essa banalização da ofensa contribui para enraizar a homofobia em nossa sociedade. Naquela época, houve até uma discussão, que o Tribunal de Justiça Desportiva (TJD) poderia punir os clubes. Então o Corinthians fez um manifesto pedindo para a torcida parar. Mas como não houve a punição na época, ficou por isso mesmo e depois não houve mais mobilização do clube. Agora acho que para os clubes se resguardarem, essas campanhas precisam ser efetivas e permanentes. Mas é ruim quando é uma coisa meramente por se precaver da punição e não por uma conscientização verdadeira, que tem acontecido com a maioria. O Vasco, depois do jogo contra o São Paulo, divulgou também uma resposta pedindo desculpas pelos gritos da torcida e clamou ali para que a conscientização não seja pela punição, mas sim por uma causa humana. Mas a gente precisa ver isso em ações de fato. O clube precisa se mobilizar mais, principalmente um clube como o Vasco, que é popular, que tem uma torcida grande, um histórico de luta contra o preconceito. Foi importante no enfrentamento ao racismo nos primórdios do futebol profissional do Brasil. Então precisa se mobilizar de verdade, não apenas em casos pontuais ou para evitar algum tipo de punição. Vejo com bons olhos, apesar de ser algo forçado em um primeiro momento. Mas acredito que a partir dessa primeira mobilização, a gente pode alcançar uma conscientização efetiva de clubes e que deixe de ser uma preocupação com punição esportiva e passe a ser um compromisso com a causa LGBT que por muitos anos, por muitas décadas, os clubes ignoraram solenemente.

RUFM – Em sua opinião, quais outras atitudes poderiam ser tomadas, além da conscientização nas redes sociais, para se evitar o crime de homofobia dentro dos estádios?

Breiller Pires – Eu acho que os clubes poderiam democratizar mais as suas estruturas. A gente vê hoje a maioria dos times brasileiros composta por dirigentes brancos, homens e heterossexuais. Então, quando você tem uma composição tão homogênea no comando, é natural que as ações do clube reflitam o pensamento desse grupo de pessoas. Então seria saudável para o futebol brasileiro ter mais representatividade em seu comando. Na CBF, por exemplo, a gente não tem nenhuma mulher em cargos diretivos. É raro encontrar alguma com poder de decisão em clubes e federações. Mesmo no comando do futebol feminino isso é raro. Então eu acho que a partir do momento em que a gente tiver mais diversidade e posições de comando, aí sim a gente vai ter uma mobilização efetiva, campanhas que sejam verdadeiramente sensíveis à causa, que não sejam meramente oportunistas. Então eu vejo que o caminho para os clubes é se abrir para uma democratização e não serem tão elitizados. Eles precisam agregar pessoas LGBT também em seus quadros diretivos. O Bahia faz um movimento muito interessante nesse sentido. Tem aberto as portas do clube. Tem um núcleo de ações afirmativas e pretende levar essas ações para o campo da prática, democratizando o conselho, diretoria. Mas é um processo que leva anos, também não acontece do dia para a noite. Mas é preciso dar o primeiro passo e abrir mais os clubes para que eles sejam mais democráticos e inclusivos.

Na última quinta-feira (29), clubes brasileiros divulgaram em suas redes sociais uma campanha de conscientização para os torcedores em relação aos gritos homofóbicos. A ação faz parte de uma proposta educativa da CBF para evitar punições aos times (Arte: :

Na última quinta-feira (29), clubes brasileiros divulgaram em suas redes sociais uma campanha de conscientização para os torcedores em relação aos gritos homofóbicos. A ação faz parte de uma proposta educativa da CBF para evitar punições aos times (Arte: Fortaleza Esporte Clube)

RUFM – Você acredita que esse tema da homofobia dentro do futebol é debatido de forma suficiente na imprensa esportiva?

Breiller Pires – Eu vejo que não. Acho que a imprensa negligencia bastante o tema até por se tratar, ainda hoje, de um assunto que é tabu. Muita gente não gosta de falar sobre isso. Há muita resistência no meio. Jogadores que nem chegaram a se declarar abertamente como homossexuais sofrem com perseguição de torcidas. O caso do Richarlyson é emblemático. Um jogador que nunca disse que era gay, mas foi perseguido constantemente nos clubes em que passou. Então há esse medo dos jogadores. A gente não tem, praticamente, jogadores assumidos como LGBT no meio do futebol. Então isso também reflete como o assunto ainda é tratado. Há pouca visibilidade à causas e para questões LGBT na mídia esportiva. Então a gente precisa também quebrar essa tabu, começar a discutir mais. Que bom que houve essa repercussão enorme do caso do Anderson Daronco, que parou a partida entre São Paulo e Vasco, para gerar um debate maior sobre isso. Isso foi discutido em vários programas de TV. E assim, não só a causa LGBT, mas a gente precisa debater também questões que são sensíveis na sociedade. Como o futebol se mistura com a política, que são relações intrínsecas à prática esportiva, debater o racismo, que o futebol naturalmente reflete como a nossa sociedade é racista. A gente não tem negros. São raros que estão no comando, como técnicos, como dirigentes. Então essas questões precisam ser mais aprofundadas e ter mais espaço na imprensa esportiva. Acho que uma grande oportunidade surge agora, com essa previsão de punição esportiva, para a gente debater mais sobre a presença de pessoas LGBT no futebol. Como a imprensa também pode ajudar nesse enfrentamento ao preconceito, que acho que é o papel nosso também. Não de aderir a movimentos, mas de proporcionar visibilidade a essas causas e essas pessoas que têm militado no esporte e feito com que avanços cheguem às instituições e mobilizem CBF, FIFA, que agora passam a enxergar a homofobia como um crime tão grave como o racismo.

Entrevista realizada por Pedro Silva, no dia 30 de agosto de 2019, com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira.

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